O itinerário de fábulas inconclusas: “Os intrépidos andarilhos e outras margens”, de Adriano Lobão Aragão

ALFREDO MONTE

I

Se eu começar este comentário citando o seguinte trecho de Os intrépidos andarilhos e outras margens[1], “… seria então possível desvendar sua origem, o ponto do qual deságua toda a narrativa, que não é mais que o interminável poema de uma mesma fabulação? Recompor o grande, imenso poema que registra o itinerário de tudo, ou pelo menos o breve fragmento que preserva os intrépidos andarilhos, motivo de sua jornada por campos tão longe de casa?”, o meu leitor mais experiente e safo poderá abanar a cabeça e dizer com seus botões, ai meu Deus!, mais outra narrativa de metalinguagem, de fabulação narrativa voltada para a própria práxis da fabulação narrativa (e suas conexões intertextuais) como tema, ai, não aguento mais!

E se eu acrescentasse outra citação, “…com os mais diversos exemplos de histórias e temas, como um entrelaçar de dias e noites que não revelava seu fim. Mas agora tinha diante de si o enredar de fios que talvez tecesse o paradeiro do objeto de sua busca (…) à espera de quem chegasse para ouvir de-que-se-trata em cada livreto, e seguia um a um desvendando se estaria ali enredada a história que procurava, se entre todos aqueles breves e inúmeros volumes encontraria os andarilhos…”, talvez venha à mesma cabeça abanada desse leitor aquele trecho paradigmático do conto de abertura (“Os desastres de Sofia”) de uma coletânea que em 2014 chega, vejam só, aos 50 anos (A legião estrangeira): “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias…”; Clarice Lispector, há meio-século, parecia já esgotar o assunto.

Mas não esgotou. E o lindo romance de Adriano Lobão Aragão está aí para desafiar os arautos e augúrios do esgotamento. Sim, ele trilha os caminhos da metalinguagem e da intertextualidade[2], e as peripécias do seu herói (o caminhante) deságuam no mundo de histórias contadas em verso e prosa no mundo de cantadores e cordelistas; ao fim e ao cabo da sua perambulação temos um livro que tanto era sua bagagem inicial quanto foi objeto de busca, e dentro do qual ele, seu leitor (que se formou, arduamente, como leitor, vindo do analfabetismo total), está contido como personagem, naquela coisa circular da cobra-mordendo-o-próprio-rabo. E não afirmarei que, nesse ponto, encontramos exatamente o encanto peculiar de Os intrépidos andarilhos e outras margens (infelizmente, esse título não foi dos mais felizes[3]), ainda que possa afirmar que o autor piauiense seja um dos que se saíram melhor, na ficção contemporânea, ao enveredar por essas espinhosas e traiçoeiras sendas.

Antes de tentar, todavia, definir tal “peculiar encanto” e esclarecer por que achei tão lindo o texto, seria bom fazer um percurso (sumário) pelos mil e um percursos da narrativa, a qual, seguindo a mais pura matriz homérica, mostra um protagonista que erra pelo mundo.

II

O território delineado em Os intrépidos andarilhos e outras margens é um sertão simbólico (eu quase que diria conceitual, se esse termo não fosse tão escorregadio; então usemos: poético), mas que se apresenta muito verossímil. Até os detalhes mais “fantásticos” (outro termo escorregadio) são apresentados de uma forma que me lembra García Márquez ou Juan Rulfo: há um deslocamento das leis físicas, sem que tal “liberdade poética”, por assim dizer, afete o substancial prosaísmo do real.

Instigado pela passagem dos “andarilhos intrépidos”, “caravana mambembe que perambulava ininterruptamente, mas não se sabe desde quando”, o rapaz de 20 anos deixa sua isolada terra natal. São percursos dolorosos, marcados pela quase-morte e uma ressurreição (“à beira da morte, que à beira da morte sempre esteve”).

A primeira passagem de relevo é por uma região arcaica e erma, esquecida do mundo (como a dele próprio) e orientada por uma férrea tradição pré-cristã, nem por isso deixando de contar com seus próprios totens e tabus. Uma história exemplar demonstra isso de forma inequívoca: o forasteiro que fora bem recebido pelos nativos, comera e bebera, contara maravilhas e lorotas de lugares distantes, e que por roubar uma cabra à sua partida, era morto e desmembrado por todos:  “…todos queriam fazer valer a lei dos antigos, que era essa ainda a sua lei e o que poderiam nomear justiça (…) Onde tantas mãos se erguem bradando a necessária justiça, que nenhum nomearia vendeta, e a todos abarca o ofício de testemunha, acusador, juiz e carrasco, e que o culpado seja executado junto a seus defensores, se estes houvessem, claro, estes mesmos que não há…

Nesse povoado há uma moça que vaga à noite (sonâmbula) até que um dia é violentada pelo filho do magarefe local. O avô mata o abusador (seguindo a Lei), mas a partir daí ela se sente vigiada pelo pai dele. Já não mais vaga inconsciente pela noite, e sim bem desperta. E em locais a que ninguém vai, quase interditos, ela descobre o caminhante, o rapaz que saíra de casa por conta dos “intrépidos andarilhos”, e que praticamente morreu de exaustão e escassez (uma de suas muitas mortes na narrativa). Como num conto-de-fadas, é o beijo da moça que o faz reviver, que o traz de volta ao seu corpo, num momento aliás de grande voltagem poética:

E ela o beijou. Ela o beijou como as primeiras gotas de chuva chegam a tocar as pétalas das flores de seu perfumado campo (…) E ela o beijou como o odor da terra úmida se mistura ao odor do mato após a chuva e ofusca o perfume das flores (…) E ela o beijou como diversas vezes juntou várias flores e pétala a pétala as desmanchava  em seu corpo e fingia a si mesma estar adormecida, esperando que acreditasse em sua própria ilusão (…) E ela o beijou profundamente, e entregue ao fascínio daquele instante, o caminhante não pôde mais continuar distante de seu corpo, entregue aos enleios de uma moça que lhe devolvia sua própria vida.

A meu ver, no entrelaçamento da trajetória do caminhante e da sua salvadora é que está o ponto alto dos 61 capítulos do romance. Apesar dos ricos veios explorados mais adiante, nada se iguala em beleza, concentração e apreensão de um mundo rústico, parado, atávico, e no entanto fremente, no qual por mais que se evoque uma tradição (violenta, por sinal) e interditos, todos os gestos parecem recém-inaugurados. Adriano Lobão Aragão parecia particularmente inspirado ao escrevê-los.

Tanto que quando o caminhante dali se afasta sentimos pelo resto do romance saudade da moça que lia os seres e as paisagens no céu, como se este fosse um espelho do mundo (haverá outra mulher, porém sem a sua força). E que se encaixa na macro-narrativa ao ser ao mesmo tempo uma individualidade e uma estória em estado virtual, nesse universo que exige exemplaridades (no sentido de histórias exemplares, que alertam e reprimem): “Transformava-se assim em mais um enredo para a história de uma jovem que caminhava dormindo pelas trevas, pronunciando palavras terríveis, enquanto era seguida por um avô ensandecido, como um personagem acrescido a uma fábula inconclusa”; ou ainda: “… até ser esquecida por todos e transformar-se de vez em apenas mais uma das histórias que mantêm firmes as tradições morais de seu povo.

O próximo estágio civilizatório já é cristão, embora um mundo cristão agônico, pejado de superstição e violência, e onde o caminhante encontrará duas novas figuras iniciáticas: o padre local, que está ali como uma espécie de esteio contra a barbárie, e que se apresenta muito menos fanático do que os seus fiéis[4], e um membro desgarrado da trupe dos “intrépidos andarilhos”, o ilusionista, que abdicou do destino mambembe por conta de um amor.

Ao contrário do mundo iletrado e telúrico da moça que o beijara (e o salvara), aqui temos o mundo regido, teoricamente, pela Palavra, e palavra escrita, embora poucos tenham o aprendizado da leitura. Nota-se, porém, correndo sob a tensão dessa Palavra, um mesmo rio de brutalidade latente ou explícita (daí a terrível solidão do padre e também a ambiguidade do talento lúdico do ilusionista, que sempre pode ser tomado como demonismo, como um avatar da “mão esquerda”, a sinistra, a malsinada),[5] baseada no famigerado costume.

Como figura típica de história iniciática, o padre diz ao caminhante (quando supõe que ele já está de partida): “A pergunta, a verdadeira pergunta, seria: o que sabes sobre si mesmo? Procuras respostas sobre essa tua jornada, caminhas por estas ruas para descobrir quem é aquele homem, mas nunca paraste para perguntar nada a si mesmo. O que esperas saber dos outros?” E é ele quem dá as “pistas” para o prosseguimento da jornada: um caminho que segue o leito seco de um rio (tendo em mente que se palmilha o dorso de uma baleia, como em certos mitos e estórias romanescas havia o dorso do dragão), e do qual ele não deve se afastar para poder encontrar a fugidia trupe intrépida.

Antes de passar para a próxima etapa, não me furto a citar um dos trechos mais bonitos do romance: “Guiara o caminhante até aqui apenas os seus instintos, sem nenhuma outra indicação. Não poderia ter receio algum em continuar, até que seja inevitável que encontre o seu destino. Sabendo que o destino de todo vivente é sempre a morte? Justamente por isso, não haveria motivo algum para temer seguir adiante.[6]

Há um interregno que evoca justamente as jornadas iniciáticas: o leito por onde se caminha, “vereda de águas ausentes”, o sono de exaustão, as cascavéis, os sete dias de “esmorecimento”, sendo tratado por um casal misterioso, que fornece a próxima “pista” (o que os cantadores cantam, como repositório de sabedoria)[7].

Após o território do arcaico e do território da sanção cristã, o caminhante se embrenha por uma espécie de mundo-feira, labiríntico mundo onde a cultura popular e mundana (“…detinha-se agora  no mergulho dos intrincados caminhos da memória dispersa de um povo…”) é destilada nos livrinhos de cordel, nas histórias mirabolantes que se imbricam com as lorotas dos vendedores de mazelas e de remédios, das malas onde pode sair uma cobra (da qual foram retirados elixires)[8].

Ao se tornar ajudante e acólito de um vendedor desses folhetos de histórias, ao tentar penetrar no seu âmago (e, por isso, aprender a ler), e assim conseguir a pista final para configurar sua jornada em demanda dos “intrépidos andarilhos” e seu paradeiro, o caminhante (e a narrativa) penetra num estágio que poderíamos chamar de “borgiano”. Malgrado haja ainda muitas peripécias (o caminhante servirá como tropeiro por muitas estradas, por exemplo), a respeito das quais não convém entrar em maiores detalhes, tudo vai se armando para equacionar esse leitor em formação, o Livro (além dos livros) e espelhá-los, sendo ele o que o livro que está lendo contém.

Nesse sentido, um dos momentos mais importantes (e verdadeiramente borgianos) é quando se evoca a vida do patrão do caminhante, e descobrimos que ela pode ser uma das vidas virtuais do jovem caminhante (“E se agora reaparecia restituído à juventude, outra vida era preciso viver, e novamente jogar-se ao interminável caminho, o mesmo”). O outro é o mesmo (e, assim, elementos anteriores da narrativa vão sendo recolhidos e transmudados, como a história do justiçamento do forasteiro, que toma outro vulto na boca do tropeiro-contador).

E aqui eu mesmo posso fazer a cobra morder o rabo, remontando ao começo deste meu comentário: “… seria então possível desvendar sua origem, o ponto do qual deságua toda a narrativa, que não é mais que o interminável poema de uma mesma fabulação? Recompor o grande, imenso poema que registra o itinerário de tudo, ou pelo menos o breve fragmento que preserva os intrépidos andarilhos, motivo de sua jornada por campos tão longe de casa?”.

III

Espero que aquele que me seguiu até este ponto tenha se dado conta (não fora por mais nada, pela insistência nas citações) do trabalho de linguagem que faz o deleite do leitor de Os intrépidos andarilhos e outras margens. Esse sertão que parece saído fresquinho do antigo testamento (quando Javé ainda era um deus primitivo, pouco tomístico), manhã recém-inaugurada do mundo, e seus contrapontos de feira e ruído, de palimpsestos de textos e referências (rios heraclitianos, vendedores de folhetins e tropeiros borgianos), só são críveis e só fascinam porque há um senhor poeta mapeando os percursos.

Ah, o perigo: fala-se em poeta, e imaginamos uma “prosa poética”, a narrativa apenas pretexto para um lirismo mal contido. Nada disso! Poeta, e dos bons[9], Adriano Lobão Aragão também é um ficcionista, só que daqueles que plasmam uma linguagem peculiar para a sua ficção (que, no entanto, tem um impulso épico, mesmo que com suas “fábulas inconclusas”).

Li em algum lugar que ele levou cinco anos para estruturar a forma final do romance e que, por isso mesmo, ela se ressente de conter em si vários estágios diferentes. Há, de fato, alguns pontos frouxos na tessitura geral, mas, insisto, na impressionante coesão alcançada, o ponto de tensão é mantido na maior parte das páginas. Se destaquei em especial a parte arcaica é talvez porque, localizada no início, ela já nos deslumbra de saída, o restante, portanto, pegando-nos prevenidos e já afeiçoados aos meios e recursos do escritor.

O que ele criou foi uma narrativa-fluxo incessante, que tem uma dicção muito ampla, correndo o risco de esfacelar-se. Para evitar isso, seu talento de estrategista poético encontrou a solução perfeita: pequenos capítulos concentrados e plásticos, verdadeiramente rapsódicos. Sem falar nas pequenas joias lapidares, ocultas no “enredar de fios”; “…continuou falando silêncios…”; “…porque aquela manhã foram muitas manhãs…”; “…o empoeirado chão lhe abrigou sereno, com seus modos amenos de abrigar tanto a semente quanto o cadáver…”; “…como o tempo que depois de desfalecer precisa o corpo reencontrar para o seu estar…”; “perfume é coisa rara em terra em que bala se alastra…

Agora só me resta convidar o leitor a tentar decifrar (e torná-lo mais conhecido, porque ele o merece) esse “livro escrito em osso, pecado e purgatório”. Osso, pecado, purgatório, signos de paisagens físicas e morais calcinadas e agônicas.

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Publicado originalmente em junho de 2014 em   https://armonte.wordpress.com/2014/06/05/o-itinerario-de-fabulas-inconclusas-os-intrepidos-andarilhos-e-outras-margens-de-adriano-lobao-aragao/

NOTAS

[1] Ed. Nova Aliança, 2012.

[2] Entre outros, o leitor identificará referências, veladas ou mais óbvias, a Guimarães Rosa, a João Cabral de Melo Neto, a José Saramago, a Borges, a Graciliano, a García Márquez. E mais Milton, Sheherazade, Homero e tantos outros, como se pode verificar no longo trecho abaixo: “Conta o cantador de versos que ao fim da praça com diversos livretos à venda, e que muitos dos versos que agora proclama aprendeu ali, como a história de um príncipe que voava com uma ave misteriosa, e de outro que matava suas esposas todas as manhãs, e de uma princesa que, raptada, enganava seu raptor com todos os homens que encontrava, e de uma outra princesa que contava histórias que não acabavam nunca, e de um poeta cego que escrevia um livro enorme sobre o céu e o inferno com a ajuda das filhas, e de um outro poeta cego que escrevia livros e mais livros com a ajuda do tempo e da eternidade, como se estivesse perdido no labirinto da imensa biblioteca da torre que deveria ligar o mundo dos homens aos céus, e de ainda outro poeta cego que mendigava e cantava a ira de um guerreiro temido que se afasta das batalhas e depois, para vingar o amigo, retorna a matar e morrer na mesma intensidade, e bem pareceria até que todos os poetas fossem cegos, mas havia ainda as aventuras de homens vestidos em metal, montados em cavalos, enfrentando dragões, vilões e bruxos que se organizavam rumo a uma terra distante que buscavam recuperar e por ela morreriam, e de jovens apaixonados que preferiam morrer a não vivenciar seus amores, e outras muitas outras histórias de toda feição e feitio que a voz de um cantador pudesse pôr em verso e enredo…

[3] Ele é insatisfatório porque não dá conta do essencial da história, e também não combina com a gravidade da linguagem (mesmo com seus elementos picarescos e paródicos, decerto). É certo que os tais “intrépidos andarilhos” são uma espécie de elemento desassossegante no imobilismo sertanejo, e fazem com que o protagonista queira abandonar seu lugarejo, e é certo que eles são inúmeras vezes citados, entretanto não creio que funcionem para o título, o que é piorado pelo “outras margens”, vago e insosso.

[4] Conheceremos sua história pregressa.

[5] Devo dizer que li o romance duas vezes e ainda considero os capítulos referentes ao ilusionista bem menos convincentes do que os do padre.

[6] E como confirmação do que coloquei nos parágrafos anteriores, a próxima frase: “Mas ainda existe muita selvageria habitando este mundo”.

A esta passagem podemos ligar outra, mais próxima do final: “… a sua única coragem talvez fosse apenas a estranha necessidade de continuar, como um rio que não sabe onde ou quando irá desaguar, ou se irá algum dia desaguar.

[7] Há um travejamento meio à Guimarães Rosa/ Manoel de Barros na linguagem: “De tanto repetir, a gente aprende ou esquece, que é sempre a mesma coisa”. No entanto, há momentos que considero menos felizes, rebarbativos, por exemplo; “O que canta a musa antiga já acabou. Agora é só se alevantar e pegar rumo. No pé adiante é que se vai. Se é tua a parte feita, o por fazer é o por fazer. E quando se lascar todo, tá chegado então. Não tem graça nem simpatia, nem arte nem engenho. O único mistério é não ter mistério nenhum.” Felizmente, a tessitura narrativo-poética que Adriano Lobão Aragão imprime ao seu livro sustenta até essas quedas retóricas.

Mas a parte mais fraca do romance, felizmente poucas páginas, e por isso nem a incluo na minha síntese acima é a do barqueiro que nunca sai do rio e não pesca nada, apenas existe ali indefinidamente (meio  A terceira margem do rio), uma não-existência consentida. Há todo um trabalho de paródia (no sentido de apropriação a sério das leituras do autor) admirável em Os intrépidos andarilhos; nesse entrecho, porém, fica-se mais próximo do pastiche.

[8] (…) inúmeros versejadores, inúmeros declamadores, inúmeros vendedores de alívio para tudo, em formas mil, seja em pomada, em garrafa, em raiz ou raspa de pau, e sempre acompanhado de inúmeras histórias que entretinham o povo ante a ânsia de uma mala prestes a ser aberta, tendo, diziam, uma cobra por conteúdo, e do veneno da cobra extraía-se muitos produtos ora anunciados, e na fala o espetáculo da paciência animada e novos resquícios do interminável poema. E repetiu esse escutar diversos vezes, atento a todos os detalhes e variações, pois diante de uma nova fonte, a esperança de realinhar a voz da história pulsava forte em suas veias, mas, após inúmeras audiências, era evidente que todas as narrações de todos aqueles famigerados divulgadores dos milagres da ciência e das misturas eram sempre as mesmas e, inevitavelmente, a mala com a cobra, origem de todos os lenitivos que anunciavam, jamais seria aberta, como caixa de alívio e de males que herdaríamos do princípio da narrativa.

[9] Exemplos de boa fatura poética do autor de Os intrépidos andarilhos:

dois rios (de as cinzas as palavras)

há em minha terra dois rios
silenciosos

um
estendido em verde tapete de aguapé
onde não mais trafegam canoas
apenas diminutas criaturas buscando seu pasto

outro
árido tapete árabe
onde todos caminham acima de sua face

então (de as cinzas as palavras)

em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda

somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa

quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata

somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce

Emendatio (de “A Coluna de São Simeão”)

corrigir um ato
refazer a coluna
reanotar cada indicação do caminho
onde não há horizonte
restam nuvens por solução

reelaborar o caminho
para continuar o mesmo
toda obra de um homem
se refaz no tempo

como tudo que é sólido
se desmancha no sangue
um homem busca corrigir seu tempo
que sozinho se esvai

não saber teu nome liberta (de “Yone de Safo”)

não saber teu nome liberta
a tarefa de nomear-te
não mais um substantivo, mesmo próprio
mas a ordem absoluta do caos

então chamo-te poesia
quando recolhes o mais tênue lirismo
na dimensão infinita de um sorriso

e quando passas breve e leve
entre silêncios justapostos
teu nome é brisa
e rompendo o silêncio te chamo lira

nomeio teu ser presságio
onde outros chamariam acaso

e não por acaso, em tua aparição repentina
juntar queria a teu nome todas as sensações
na mais profunda sinestesia

e se acaso perguntasse
que reposta me daria?
que adianta um nome
se nada mais estaria
nesse nome sua dona
que nunca mais veria?

então juntaria teu nome
a todos os nomes da vida
e em cada coisa querida
ali teu nome estaria

quando desejar não é ter
mas querer mais além ainda
mesmo apenas guardar um nome
entre as lacunas da vida

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Alfredo Monte (1964-2018), doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, por muitos anos, manteve o blog Monte de Leituras (https://armonte.wordpress.com), dedicado à crítica literária.

Palinódia, Wanderson Lima

LIMA, Wanderson. Palinódia. Teresina: Elã, 2021.
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PRÓLOGO

Saturado do tempo
E da divindade,
Alado, sagrado,
Fora de mim;
A dor e o medo
meu, e dos outros,
extático a sondar,
Acordei, mil olhos,
Lançado no limbo
Dos vates. Torpe
Inspiração divina
Assanhou-me o estro
E acordou-me o ícone
De um cérbero bondoso
De três faces sofridas:
Maria de Manaus1, devota
que perdeu três filhos;
Jair Pecus, o que adora
O deus guerreiro hebraico;
Sr Torres, cético paladino
engaiolado em Teresina.
Com estes compus o tom
Desta tosca palinódia
Onde lavro o meu canto
– Chuviscado de bíblias,
Eivado de bricolagem –
A buscar a luz que esplende
Do vírus à face do humano.

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NESTA GAIOLA MODERNA

Nesta gaiola moderna
– Cativante cativeiro –
Os dias das horas se perderam
Num tango de desencontros.
Um boa noite pode escapar
No papocar do sol. No breu
sem brisa de Teresina,
Importa pouco a cor da tinta
Que esboça a aquarela
A que chamamos Real.
Tanto pôde o vírus
Que já não bastasse o medo
Trolou nossos relógios
Com o pincel da anarquia.
Em 80m quadrados
De sete mirrados cômodos
Três diferentes seres
Emulam os brancos ratos
Cobaia da pesquisa.
O dia rasteja enquanto
O trio de tolos estoca
A comida no bucho
o sono nos olhos, o medo
e o suor no corpo.
Livre de verdade
Só as memórias
De um tempo de errâncias
Sem a vigília do vírus.

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Wanderson Lima (Valença-PI, 1975) é professor universitário e escritor. Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, integra o Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Em 2018 publicou pela editora Horizonte a obra Travessuras de um menino mau e outros ensaios sobre animação; no ano seguinte, pela mesma casa editorial, publicou Ensaios sobre literatura e cinema. Por dez anos, foi editor da revista Desenredos, da qual é membro-fundador.

A geometria dos ventos, Álvaro Pacheco

PACHECO, Álvaro. A geometria dos ventos. Rio de Janeiro: Record, 1992.

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ÁGUA-FORTE

Um ideograma chinês
de conotação erótica:
um verso de Pound
transcrito em Mandarim
tatuado
entre as coxas mais brancas
como um aforisma de Confúcio, sem
qualquer razão, como
os nomes das mulheres,
Jaqueline, Eveline, Sein, Andrea –

é necessário um condom
para o ideograma, ou uma frase solta
no alfabeto celta –

enquanto isso
se suicidam adolescentes e um velho
de oitenta anos
assassina em Paris seus descendentes
para não deixar herança:

o ideograma permanece
tatuado em azul
entre as coxas mais brancas
como uma ave

(ou um aviso)

Rio, janeiro de 86

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MITOLOGIA

De poucas coisas a vida:
pequenos desejos: ver
uma grande árvore florindo,
alimentar uma criança,
abrigar-se da chuva,
dizer simplesmente bonjour
e contemplar no crepúsculo
os barcos dos pescadores convergindo,
como numa valsa,
mansamente para o lugar dos peixes.

Talvez não ser de nada possuinte,
apenas locatário provisório
de um riozinho de águas perenes
que corra entre árvores e gravetos
como uma estrada perdida
ou da montanha
à distância
coberta de neve e narcisos
ou de uma relíquia preciosa
que jamais fez nenhum milagre
como uma criança
e toda sua mitologia
de poucas coisas e simples desejos.

Rio, abril 91

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Álvaro Pacheco nasceu no Piauí, fez os seus primeiros estudos em Teresina e veio para o Rio de Janeiro em 1950, onde fixou residência. Fundou a Editora Artenova Ltda., em 1962.
Estreou em livro em 1958 com Os instantes e os gestos, seguindo-se Pasto da solidão (1965), Margem rio mundo (1966), O sonho dos cavalos selvagens (1967), A força humana (1970), A matéria do sonho (1971), Tempo integral (1973), Homem de pedra (1975), Itinerários (1984) e A balada do nadador do infinito (1984).

Agulha de coser o espanto, Diego Mendes Sousa

SOUSA, Diego Mendes. Agulha de coser o espanto. Teresina: Área de Criação, 2023.

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CERTEZA

Poesia
é o pássaro
afogado
no mar

o peixe alado
sobre a terra
firme

a luz fugidia
na manhã

o diáfano
no deserto

o rosto
sem tempo

a matéria
sangrenta

o vento
estático
da vida

e o segredo

Poesia
é a fé
e a febre

a dor e o amor

o olhar
no silêncio
e o degredo

a mudez do grito
a vela do incêndio
a ausência
do destino

Poesia
é o pensamento
é o sentimento
é o deslumbramento
desse canto
amargo

Antes de tudo
e depois do nada

o fim do começo
e o início do fim

Poesia
é a mãe
do mistério
e a solidão
da sombra

(a casa
íntima
da alma)

Poesia
é a agulha
de coser
o espanto

a vaga lírica
a tristeza da alegria
magra

o encanto

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A CASA

A casa desabriga o mínimo
e abre o tempo que perpassa
sob os alardes ferozes do vivido.

Os lençóis de linho.
As paredes intactas.
Os quadros imóveis.
As camas confessas,
os travesseiros de algodão,
os habitantes
desaparecidos do lugar.

Os segredos da família, o seu desamparo
além de todas as cousas adiadas e pressentidas,
os seus desejos violentos e a sua insônia.

A casa abriga o máximo e deixa desabrigado o mínimo.

As tardes interrompidas, o absurdo paralisado.
As sobras que predizem
o não dizer.
O rosto insular.
Pedaços da dor, alimentos. Seus restos.

Os guizos do silêncio.
Os sinos, a mesa posta.
Aventura da memória farta.
Mãe. Pai. Vô. Vó. Irmãos.
Febre e deslumbramento.

A casa sobrevive em sua turbulência
de sombra e solidão possuídas.
Detida por arranhões, os alicerces rompidos.
Noturna e ferida
por procelas não esquecidas.

A casa hospeda o íntimo,
a árvore, a genealogia, os quintais,
as mangueiras da infância,
os pássaros imaginários, os bens audíveis da alma,
o espelho e as suas trincas,
as alegrias e as tristezas.
A casa,
o seu ser risível,
a profecia do estranhamento
que reabita
anuncia
sentimentos, alucinações
e os seus próprios vazios.

A casa e o seu interior.
A fala agressiva. Provocações.
Manhã envelhecida.
E outra vez
os seus sóis.

A casa expulsa o íntimo e o seu mínimo.
As raízes. As lembranças do amor.
As fantasias mais cruéis.
O olhar deveras possessivo e os seus fantasmas.

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Diego Mendes Sousa nasceu em 1989, em Parnaíba, PI. Poeta, cronista, crítico, memorialista. Autor, dentre outros, de Divagações (2006); Fogo de alabastro (2011); Velas náufragas (2019) e Rosa numinosa (2022).

Haicais do Sol, Dílson Lages Monteiro

MONTEIRO, Dílson Lages. Haicais do Sol. Teresina: Nova Aliança, 2023.
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Jaçanã na lagoa
piando alto, alto
todas as tardes.
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Sapoti doce
moderida de morcegos
apodreceu no chão
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Dílson Lages Monteiro vive em Teresina, PI. Nasceu em 1973, em Barras do Marataoã, PI. Ficionista, poeta, ensaísta. Atua no magistério como professor de linguagens há três décadas. Edita, desde 2002, o portalentretextos.com.br . Autor, dentre outros, de O sabor dos sentidos (poemas, 2001); O morro da casa-grande (romance, 2011) e Ares e lares de amores tantos (poemas, 2014).

Amálgama entrevista Paulo Machado e Francisco Miguel de Moura

Entrevista publicada originalmente na revista Amálgama, número 3, em maio de 2002. Na foto, Adriano Lobão Aragão, Sérgio Batista, Francisco Miguel de Moura, Paulo Machado e Jeferson Probo.
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Paulo Henrique Couto Machado nasceu em Teresina, Piauí, em 1956. Defensor público. Poeta e contista, pertence à Geração Pós-69. Na década de setenta, fez política estudantil e editou, ao lado de companheiros de geração, o jornal mimeografado ZERO. Integrou o grupo responsável pela edição do jornal alternativo Chapado do Corisco, em 1976 e 1977, em Teresina. Atualmente, participa da edição da revista Pulsar. Publicou Tá Pronto, Seu Lobo? e A Paz no Pântano, poesia; O Anjo Proscrito, contos; As Trilhas da Morte, ensaio sobre a matança e espoliação das populações indígenas na bacia hidrográfica parnaibana piauiense.

Francisco Miguel de Moura nasceu a 16 de junho de 1933, em Francisco Santos, Piauí. Pós-graduado em Crítica de Arte pela Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Funcionário aposentado do Banco do Brasil. Membro da Academia Piauiense de Letras, do Conselho Estadual de Cultura e da UBE. Dirigiu a revista Cadernos de Teresina por algum tempo e ditou a revista Cirandinha, ambas de feição literária. Dentre seus livros, destacamos Areias, Pedra em Sobressalto, Bar Carnaúba e Poesia in Completa, poesia; Os Estigmas, Laços do Poder e Ternura, romances; Eu e meu Amigo Charles Brown, contos; Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho, ensaio.

Numa tarde de sábado, 13 de abril de 2002, Amálgama recebeu os dois escritores para uma entrevista com Jeferson Probo, Adriano Lobão Aragão e Sérgio Batista. Confira.
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amálgama – O que é poesia para vocês?

Francisco Miguel de Moura – Hoje, eu já considero a poesia a própria vida, porque minha vida sem poesia não tem sentido. O que eu vou fazer sem poesia? Eu não sei o que iria fazer, talvez até me matar, não sei. E o resto é mais nada. Eu sou radical nesse ponto. Para um leitor, eu acho que a poesia é uma maneira de se auto-examinar, de se auto-criticar, de se auto-pensar e também de resolver certos sentimentos que se não forem resolvidos acabam até prejudicando fisicamente. Já nem falo espiritualmente porque é verdade que prejudica. Acho que é a mais bela e importante forma de comunicação do homem.

Paulo Machado – Literariamente, eu entendo que a poesia é a arte de expressão mais carregada de emoção. Que isso não seja entendido que a poesia necessariamente só pode estar presente na literatura ou mais restritamente em quem escreva em versos. Ela pode estar presente em quem escreva em prosa, e há poesia também em outras manifestações artísticas que não seja a literatura. Acho que é possível identificar a poesia numa escultura, numa pintura, em uma manifestação arquitetônica…

amálgama – Então a poesia seria uma essência, e não uma forma?

Chico Miguel – Aí eu contesto, porque a poesia também é forma. Eu acho que nesse caso a gente nem pode separar a forma do conteúdo. Quando você muda a forma, muda o conteúdo. Quando você muda o conteúdo, tem que mudar a forma. Só muito preliminarmente, didaticamente, você pode colocar essa coisa de forma e conteúdo em obras de arte, principalmente na obra de arte da qual nós estamos falando, que é a poesia.

Paulo Machado – Eu não coloquei naquele momento que a poesia fosse essencialmente o aspecto de conteúdo. Até lembro aqui as palavras de Torquato [Neto], que diz que um poeta não se faz com versos. Não é fazer versos que necessariamente se está operando a condição de poeta. Também Maiakovski, que diz que uma arte revolucionária tem uma forma revolucionária. Mas eu só estava expondo um ponto de vista no que diz respeito à poesia enquanto arte literária.

amálgama – Chico Miguel, nas produções poéticas recentes, como o senhor vê a motivação do soneto hoje em dia?

Chico Miguel – Fica aquela anedota que diz que o poeta que não faz soneto ainda não está provado ser poeta. É apenas uma brincadeira, é lógico, é natural. Mas quero dizer que o soneto é muito difícil. Se você quer provar que um cara é alguma coisa, manda ele fazer um soneto. Você consegue, qualquer pessoa consegue, se tiver uma noção mínima do que seja o soneto. Agora, para fazer um bom soneto é muito mais difícil. Primeiro, as pessoas dizem que não existe inspiração. Existe! Precisa-se estar inspirado. Mas inspiração não é naquele sentido de que a inspiração seja tudo…

amálgama – Inspiração é quando baixa um santo?

Chico Miguel – Não, não é isso de jeito nenhum. Inspiração é você estar de espírito aberto para a poesia. É uma coisa bem diferente. Se você está com inspiração, você pode fazer um soneto. Você pode depois burilar esse soneto, que é a técnica.

Paulo Machado – A poesia grega é inegavelmente uma grande poesia ocidental e não há nela a expressão sobre a forma fixa do soneto…

Chico Miguel – Não, porque já foi do italiano. Essa forma fixa nasceu no Renascimento.

Paulo Machado – A poesia oriental, e nós talvez temos muito ainda o que aprendermos com os orientais, em nenhum momento se definiu pela experiência do soneto. Em contrapartida, lá também existem formas fixas com definição de números de versos, e cada verso com determinados números de sílabas, como o haikai. Acho que é uma experiência de disciplinamento. Há um momento na poesia brasileira que houve uma predominância de pessoas procurando fazer poesia escrevendo o que eles entendiam ser soneto. Então daí uma abundância de sonetos que, se nós formos fazer uma seleção, são poucos, muito poucos os que ficam. Mas nós não temos também como repudiar, por exemplo, vários sonetos escritos por Bilac, por Alberto de Oliveira, por Francisca Júlia, que são obras literárias que devem constar em qualquer apologia. Eu lembro aqui a experiência de Mário Faustino. Em O Homem e Sua Hora, antes do poema que dá titulo ao livro, existem os sete sonetos de amor e morte, que são peças literárias de inquestionável valor.

Chico Moura – Tenho muitos colegas que dizem não querer nem ver soneto… Não é assim. Não podemos ser assim.

Paulo Machado – É inegável que há uma certa receptividade da sociedade brasileira para a identificação com o soneto.

amálgama – Paulo, no lançamento da segunda edição de seu livro, Tá Pronto, seu Lobo?, o editor, Cineas Santos, mencionou a ausência de uma herança cultural das gerações anteriores em relação à de vocês. Ele poderia estar se referindo ao CLIP [Círculo Literário Piauiense, onde destacaram-se Chico Miguel, Herculano Moraes e Hardi Filho]? Como você vê esse relacionamento?

Paulo Machado – A própria história literária prova um relacionamento estabelecido num momento inicial. Em 1976, quando foi feita a edição de um livro de poemas chamado Ciranda, dos seis poetas editados, dois pertencem ao CLIP. A própria capa foi feita pelo Hardi Filho. Os dois participantes eram exatamente Francisco Miguel de Moura e Hardi Filho. O questionamento que o Cineas fez naquele dia, e eu, como participante da geração também faço, é que quando olhamos para trás e buscamos o referências e pontos de apoio que poderiam servir para um avanço, e estou tratando especificamente da questão piauiense, nós estávamos diante de quase uma lacuna, porque eu considero que nenhuma de nossas gerações conseguiu suplantar para realização da geração que fundou a Academia Piauiense de Letras. É uma geração que deixou toda uma produção, tanto literária quanto de pensamento, que precisa urgentemente que se lute por organizá-la e torná-la pública, pois é uma produção vasta e dispersa.

Chico Miguel – Eu escrevi um livro chamado Literatura do Piauí, então como eu coloco essa questão lá, não posso me contradizer. Sobre a Geração 70, tem gente que chama Geração Pós-69, mas eu chamo 70…

Paulo Machado – Eu defendo o termo Geração Pós-69, por razões estéticas, históricas e…

Chico Miguel – Eu não tiro nenhuma de suas razões, apenas eu fico com 70, já que é da mesma coisa que nós estamos falando. Mas a nossa Geração CLIP, que praticamente se fixou com a minha chegada em Teresina em 64, já que encontrei aqui o Herculano Moraes e o Hardi Filho, o que nós tínhamos era a estagnação. O que havia em Teresina? O. G. Rego de Carvalho tinha ido para o Rio, Paulo Nunes para Brasília, Dobal estava para o Rio ou Inglaterra, não sei. O que tinha aqui? Tinha Fontes Ibiapina, autor isolado, tinha Miguel de Matos, que apenas divulgou literatura, seria até um bom crítico se tivesse se dedicado. Tinha a Academia, mas estava meio morta, com Simplício Mendes na direção. E nós, interessadíssimos em literatura, nos juntamos e fomos arrebanhando, batendo papo, contando piada, então nós juntamos pessoas interessadas, que faziam poesia, fizemos um estatuto e um jornal que só saiu um número. Mas nós nos reuníamos todos os domingos, Geraldo Borges, Benoni Alencar, outras pessoas. Aí vieram aquelas repressões terríveis, aquelas coisas que ninguém quer nem falar hoje. Geraldo foi preso, Benoni foi preso, Diogo foi preso, não sei quem foi preso. Eu não fui porque não me expunha demais. E aí foi dispersando, dispersando e não tinha mais ninguém junto, todo mundo disperso. Foi quando outras pessoas, dentro da repressão, saiam nos bares, aquele negócio todo, e veio o Torquato Neto e deu entrevista, eu publiquei na revista, depois que eu fiz a revista chamada Cirandinha, que o Paulo Machado também participou dela. Então a nossa geração foi mais ou menos isso. Nós não éramos nem contra a Academia e muito menos contra os jovens. Nós queríamos era que aparecesse mais gente. Para mim era isso.

Paulo Machado – Na verdade, os últimos remanescentes da geração de fundação da Academia falecem na década de 40, a Academia caiu nas mãos de pessoas que, sejamos francos, não tinham identidade nenhuma com o fazer cultural e nem com o fazer literário. Estavam lá, foram eleitos e empossaram-se, e essa lacuna vai exatamente fazer com que não haja esperança.

Chico Miguel – Essas questões de geração têm que ser conflituosas, como são conflituosas as pessoas.

Paulo Machado – Onde não existe conflito não existe vida.

Chico Miguel – Eu nunca briguei por literatura para levar aquela briga para o terreno pessoal. Então, quando eu discordo do Paulo, quando o Paulo discorda de mim, quando o Cineas discorda de mim, quando eu discordo do Cineas, não significa nada não. Continuamos fazendo a mesma coisa e lutando pela mesma coisa. Isso é que é importante.

amálgama – Como vocês vêem o estudo literário feito atualmente no Piauí?

Chico Miguel – O nome de João Pinheiro [autor de Literatura Piauiense, escorço histórico] deve ser respeitado pelo que ele fez. Era o que tinha de teoria, história e literatura naquele tempo. Era o que tinha de literatura do Piauí e não podia ser melhor do que aquilo. Ele foi muito bom até. Tem só alguns errinhos normais. Agora, o que foi que apareceu depois dele? Herculano Morais com um livro que eu considero o melhor dele em crítica literária, a Nova Literatura Piauiense, embora tenha uma certa conotação com a Nova Literatura, do Assis Brasil. Mas eu considero muito importante porque ele foi muito corajoso em criticar determinados autores. É um livro de críticas, um livro importantíssimo da nova literatura, ele não quis reeditar, mas depois ele escreveu a Visão Histórica da Literatura Piauiense. Aí então já mudou, porque é aquela tal estória de escrever um livro para agradar fulano, botando pessoas para agradar a família ou qualquer coisa assim. Então, o Herculano pecou principalmente nessa parte e também numa coisa que ele não teria muita possibilidade de progresso, que é a questão da formação. Ele tem formação jornalística, não tem formação de professor de literatura, essa coisa toda, teoria e tal. Então esses são os pecados do Herculano Morais. Mas é uma coisa que serve, é uma coisa importante. Estou fazendo a crítica, mas estou fazendo também dentro de um parâmetro que eu considero normal. Você não pode só meter o pau numa obra sem ver que quase toda obra tem alguma coisa importante a dizer.

amálgama – Quem você citaria, após o Herculano?

Chico Miguel – Depois veio o Adrião Neto [Literatura Piauiense para Estudantes], que faz uns livros para estudantes, naturalmente para ganhar dinheiro. Naturalmente, eu não condeno. Quem vive numa sociedade capitalista faz as coisas para ganhar dinheiro. Se não ganhar é por que não ganhou. Mas ele não tem aquele estorvo, digamos assim, teórico, básico, para fazer. Então o que ele fez foi copiar muita coisa, mas tem sua serventia. O Romero [Presença da Literatura Piauiense em Concursos e Vestibulares], que poderia ter escrito uma boa história da literatura, não escreveu. O livro dele serve apenas para aulas. São importantes, a seleção que ele fez é importante. Todas essas coisas serviram de base, inclusive o Adrião e o Romero, todas elas me deram algum elemento, positivo ou negativo. O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que eu escrevi um livro de literatura do Piauí que pode não ser o melhor, mas eu tentei fazer com que fosse o melhor.

Paulo Machado – Eu entendo que qualquer literatura, para que subsista como tal, necessita ter um sistema literário que se compõe dos autores, que produzem a literatura, do crítico literário, que faz a apreciação analítica de possíveis valores identificados no que foi produzido, e do leitor, do consumidor. Se eu produzo, e o que eu tenho a produzir não passa por um crítico de análise, ou mesmo que passe por um crítico de análise, mas não chegue ao leitor, essa literatura é incompleta. Então a partir desse ponto de vista, e fazendo uma retrospectiva, o que eu consegui reconstituir até agora foi que num primeiro momento existiam autores isolados que produziram, as suas obras foram editadas, mas nunca no Piauí, e se a gente pega como referência, só como marco cronológico, Poemas, de Ovídio Saraiva, foi o primeiro livro editado por um piauiense. O Ímpio Confundido e O Santíssimo Milagre, de Leonardo de Carvalho Castelo Branco, foram editados em Lisboa, e A Criação Universal foi no Rio de Janeiro. Flores da Noite, de Licurgo de Paiva, em Recife. Ecos do Coração, depois reeditada como Lira Sertaneja, de Hermínio Castelo Branco, no Maranhão. Então o que nós tínhamos? Autores esforçados na edição dessas obras, mas não existia a figura do crítico literário para desempenhar o papel de avaliação…

Chico Miguel – Aí eu discordo de você…

Paulo Machado – … e nem a figura dos possíveis leitores. Eu não estou considerando, por exemplo, que sejam leitores aqueles que tinham relação de parentesco ou de amizade que pudessem adquirir essa obra por circunstâncias dependentes disso, mas sim um leitor que fosse motivado a adquirir a obra por necessidade de consumir cultura. Nesse período, que decorre desde meados do século XIX até a virada para o século XX, o que se tem é isto. Não há a presença do historiador literário. Mas na virada do século, logo nos primeiros anos do século XX, as mudanças que eu consegui identificar são que a produção literária feita por piauienses já começava a ser editada no Piauí, começa a surgir a figura dos críticos literários e eu presumo que já existissem alguns leitores, embora fossem poucos. Há uma produção de crítica literária e de literatura nas duas primeiras décadas do século XX que está esparsa em jornais e revistas e que não foram resgatadas. Por exemplo, há contos realistas numa transição entre o realismo/naturalismo de boa qualidade literária, escritos por Clodoaldo Freitas, que estão editados numa revista chamada Litericultura. Essas revistas estão no acervo da Casa Anísio Brito, aqui no Estado do Piauí.

Chico Miguel – Por incrível que pareça, eu soube que uma boa parte dessas revistas já se perderam.

Paulo Machado – Mas, há bem pouco tempo, eu as manuseei e os embargos correspondentes dessas edições estão disponíveis. Existe um jornal chamado O Artista, de 1902, onde um capítulo do romance Um Manicaca, que só viria a ser publicado em 1909, já estava editado. Em 1905, no Jornal A Pátria, foi editado um romance completo na forma de folhetim, de cunho memorialista, de autoria do Clodoaldo Freitas. Chama-se Memórias de um Velho. E essa literatura não foi recolhida ainda, não foi editada para ser colocada para análise. Ela existe, está nessas fontes, nem tão perdidas assim, porque na verdade parece que o que não houve ainda foi uma decisão de se formar um grupo de estudo para buscar identificar essas fontes, analisá-las, avaliá-las e publicá-las. Elas têm que se tornar públicas. Inclusive, o Professor João Pinheiro é o primeiro historiador de literatura brasileira de expressão piauiense com livro publicado, mas não é o primeiro. Eu lembro aqui de dois antecedentes: Clodoaldo Freitas, que escreveu uma série de artigos analisando a produção literária, …

Chico Miguel – Que é uma das minhas fontes.

Paulo Machado – … e um estudo razoavelmente vasto escrito por Lucídio Freitas sobre a história da poesia piauiense. Esse trabalho está numa organização feita por Celso Pinheiro, que organizou as obras completas dos dois irmãos, Lucídio Freitas e Alcides Freitas…

Chico Miguel – Eu queria voltar àquela questão que diz respeito à literatura do Piauí, a partir de quando nós podemos identificar como fenômeno literário. Na minha visão, a partir do ano 1870, nós já podemos identificar o fenômeno literatura no Piauí. Por quê? No meu entendimento, já há leitores. Dentro das condições do Estado, lógico, mas já há leitores. Relativamente já existem algumas escolas, e relativamente existem também jornais. Depois da mudança da capital de Oeiras para Teresina houve um fluxo de tipografias, livros se produziam aqui.

Paulo Machado – Eu só estava colocando que essas obras, a que fiz referência, foram editadas fora, não apenas pela inexistência gráfica no Piauí, mas também por pessoas que tinham interesse da edição tipográfica fora do Estado. Existiram os autores, mas eu não consigo identificar a existência do crítico literário como avaliador, e um público que satisfizesse a produção, porque a produção terminava circulando num círculo muito pequeno.

amálgama – O.G. Rego de Carvalho, numa entrevista, declarou que o autor que não pertença à literatura brasileira não pertenceria a literatura alguma.

Chico Miguel – Quem disse isso?

amálgama – O . G. Rego de Carvalho.

Chico Miguel – Eu acho que o autor, para ser brasileiro, tem que ter a condição de ser um autor que tenha o nível dos grandes autores da literatura brasileira. A questão de ser divulgado pelo Brasil inteiro é uma questão de editora, que não tem nada a ver com literatura, mas com marketing comercial.

Paulo Machado – Eu entendo que existam literaturas nacionais. Eu não entendo nem que seja possível considerar a existência de uma chamada literatura regional, a literatura do norte, a literatura do sul, literatura do sudeste, do nordeste, considerando que o território a ser levado em consideração é o do Brasil. Então existe a literatura nacional, independente de onde quer que o autor tenha nascido, onde ele tenha vivido, onde ele venha a morrer. Existem inúmeros casos de autores que foram exilados e deixaram de estar dentro de seu território nacional e por essas razões não deixaram de ser autores nacionais.

Chico Miguel – Aí eu concordo. É o que ele escreveu, não onde ele está nem onde nasceu. É onde ele escreveu.

Paulo Machado – Retomando a minha ideia, nós estamos tratando de literatura, uma arte de se expressar através da língua. Essa língua deve ser uma língua nacional, com suas variações…

Chico Miguel – Justamente! Essas variações é que dão feição às literaturas regionais.

Paulo Machado – … com suas variantes dialetais e com os enfoques paisagísticos naturais e humanos de cada região, são reconhecidas como obras literárias e passam a ser obras da nação brasileira e os autores são autores brasileiros. Então, Graciliano Ramos é um autor brasileiro não porque ele tenha feito um enfoque voltado para a região nordeste e a paisagem e o homem nordestinos estejam presentes na obra de Graciliano, ou a língua portuguesa de expressão brasileira, trabalhada em termos de linguagem, tenha conseguido a identificação na forma de se expressar dos nordestinos. É uma obra nacional porque conseguiu chegar ao patamar de alcançar literariamente o Brasil, assim como Guimarães Rosa, com diversos outros autores. Eu compreendo as posições de O.G. Rego como positivamente radicais em determinados momentos, mas têm sido de ótima contribuição que a gente tenha conseguido progredir. O que faz com que O. G. seja um autor nacional é a qualidade da obra, e por isso, Francisco Miguel, é que defendo o mesmo ponto de vista em relação a Mário Faustino. Ele nasceu em Teresina, e sua migração para Belém do Pará não foi voluntária. Eu defendo didaticamente que seja positivo para nós a inclusão do Mário como autor piauiense.

Chico Miguel – Eu acho que cada qual tem seu ponto de vista, e o meu já está em livro [Literatura do Piauí]. O.G. Rego de Carvalho, para você ter uma idéia como ele é contraditório, ele escreveu Somos Todos Inocentes para mostrar que era autor piauiense. Mas isso são questões de menor importância, digamos assim. O que importa mesmo é a literatura. Se a gente for radical mesmo, não existe nem literatura brasileira. Existiria apenas literatura ocidental. É tudo uma questão de ponto de vista.

amálgama – Paulo, quem é o lobo?

Paulo Machado – O título do livro, Tá Pronto, Seu Lobo?, como não poderia deixar de ser, é uma criação metafórica. Qualquer leitor que proceda a uma leitura apurada dos poemas que constituem o livro irá identificar uma pista, exatamente no poema Postulado, onde está dito que: fazer poemas é fácil / como amordaçar um lobo. Eu não estou tratando do lobo mamífero. Todas as dificuldades criadas pelas estruturas de poder, inclusive as estéticas, precisam ser desafiadas por quem se dispõe realmente a fazer poesia. Acho que não precisa nem explicitar que fui irônico quando disse que é fácil fazer poemas, e quem faz sabe que não é, e muito menos colocar uma mordaça no lobo.

amálgama – Como o senhor vê a inclusão de seu livro na lista de obras adotadas para o Vestibular 2003 da Universidade Federal do Piauí?

Paulo Machado – A inclusão ou não de uma obra literária em qualquer lista, de qualquer tipo de exames, tem uma única coisa positiva. Talvez seja a questão de foco e que determinado grupo de consumidores, leitores, que no caso seriam involuntários, porque não estariam fazendo opção, teriam suas atenções voltadas num determinado momento para aquela obra. Mas a receptividade da obra não vai depender disso. Portanto, eu não considero que seja mais nada do que isso. Há um enfoque transitório, mas o livro, obviamente, não permanecerá eternamente na lista, independente do valor que tenha.

amálgama – Mas, de qualquer forma, não seria um reconhecimento do valor de sua obra?

Paulo Machado – Eu não sei. Nunca me foram explicitados quais os critérios utilizados, nem quais as pessoas que procederam à escolha. Não sei se foi por estar bastante emocionado, mas me surpreendi, no momento do relançamento do livro, por não ter conseguido identificar entre os presentes nenhum representante da UFPI, ligado ao Departamento de Letras, que possa ter indicado a obra para o Vestibular.

amálgama – Chico Miguel, a Academia Piauiense de Letras exerce alguma função social aqui em Teresina?

Chico Miguel – A Academia tem que se cuidar para não ficar ultrapassada. São questões financeiras, questões de mudança dos tempos, e o principal é criatividade. Mas a criatividade depende dos homens que fazem a Academia. Isso tudo é cíclico, porque a economia também é cíclica, o mundo está numa mudança terrível. Mas acho que a Academia vai se superar. Acho que tem condições de superar.

amálgama – A Academia não estaria, nesse momento, iniciando um processo de estagnação semelhante àquele da geração que sucedeu a geração de sua fundação?

Chico Miguel – Eu vejo que sim, mas quero acreditar que não.

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Poemas insidiosos, Caio Negreiros

NEGREIROS, Caio. Poemas insidiosos. Teresina: Fundação Quixote / Avant Garde Edições, 2012

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um ipê
no meio do tempo
sorri para a solidão

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longe dos olhos
a nuvem desfia
o milagre das águas

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Caio Negreiros é ex-atleta aposentado compulsoriamente. Estuda música com sucesso duvidoso. Poeta e Procurador do Município de Teresina. É autor dos livros: A decadência das horas, Portal do Hades e Sobras do dia (Edições Não-Ser).

As cinzas as palavras, Adriano Lobão Aragão

ARAGÃO, Adriano Lobão. As cinzas as palavras. 2.ed. Teresina: Desenredos, 2014.

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ENTÃO

em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda

somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa

quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata

somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce

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AS CAPAS OS DISCOS

ontem eu vi o disco da vaca à venda na galeria
onde há muito naqueles campos estranhos me perdi
entre os riscos do vinil motocicleta e sinfonia

ontem eu vi um velho em um quadro carregando lenha
adornando em parede destroçada a capa de um álbum
e a iluminada escuridão de um dirigível de chumbo

ontem eu vi o álbum branco que depois de muitos anos
pude perceber as matizes dispersas de suas cores
e seu discreto nome de besouro impresso em relevo

mas há muito dispostos em silêncio seus sons evocam
sonora imagem retida na retina da memória

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Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, 1977.  Autor, dentre outros, de Entrega a própria lança na rude batalha em que morra (poemas, 2005), Yone de Safo (poemas, 2007) e Os intrépidos andarilhos e outras margens (romance, 2012). A segunda edição de As cinzas as palavras mantém o texto original da primeira edição, lançada em 2009 e que contou com uma tiragem limitada de apenas 80 exemplares.

Pedra em sobressalto, Francisco Miguel de Moura

MOURA, Francisco Miguel de. Pedra em sobressalto. Rio de Janeiro: Pongetti, 1974.
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SECO

Nos dentes francos,
nos olhos úmidos,
o poema esmaga-se.

E morre comigo
o tentado desfeito,
na raiz esquálida.

(Se não floresce
na terra lavada
do sangue dos homens).

Das rugas e fráguas
nascem mil poemas.

Na poeira, crescem
da nuvem do rosto.

Vão permanecer.

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MOMENTO

Muito azul no dia,
tudo existe em mim,
sem expressão.

Orvalho,
manhã firme,
aves nos ramos,
flores virgens, cores:
– Jogo os braços no ar.

A flor mais simples,
mirando o sol,
vai desprendendo
______perfume,
__________pela clareira.

Naquele instante
o céu diminuiu.

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Francisco Miguel de Moura nasceu em Picos, PI, em 1933. Publicou as obras Areias (poemas, 1966); Linguagem e comunicação (reunião de ensaios sobre a obra do romancista O.G. Rego de Carvalho, 1972).