Wanderson Lima
“Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana” – diz-nos Antonio Candido – “há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos diferentes Estados”. No Piauí, não se foge à regra: há certas recorrências estilísticas, certas continuidades temáticas que, se não nos são exclusivas, não estão espalhadas nos quatro cantos.
Mas Candido, sempre cauteloso, não afirma que essa diferença com que a literatura se apresenta em diferentes Estados gere sistemas literários autotélicos. Pensar em estéticas nacionais e regionais é um equívoco do qual Candido não partilha; em seu sistema, à absorção de uma nova estética preside um processo dialético que conjuga questões locais aos princípios daquela estética. Assim, o romantismo brasileiro não é igual ao francês, ainda que se inspire nele; por outro lado, uma vez que se trata de um processo dialético, o fato de os autores brasileiros redimensionarem temas e padrões românticos para fazê-los falar sobre nossa realidade não indica que o romantismo brasileiro constitua uma estética nacional. Em última instância, portanto, se falarmos em literatura regional, a peculiaridade desta seria de natureza temática, jamais estética: assim, só a literatura piauiense se empenharia em ficcionalizar o que se convencionou chamar – passe a palavra! – piauiensidade, isto é, um conjunto de traços construídos coletivamente através de variadas práticas culturais, assumidas sob o rótulo de identidade cultural piauiense.
A noção de literatura regional, portanto, tem de partir da concepção da literatura como expressão do espírito de um povo ou de um local – concepção justa, mais propensas a exagerações. Adotando este ponto de vista, consideramos que na literatura piauiense está contida a “alma” do povo piauiense. A literatura aqui é espelho em que o povo se constrói e se mira; é documento dos mais valiosos, porque está nele o que um povo pensa de si.
Dentro dessa perspectiva, a literatura abre um flanco de pertencimento fundamental na constituição de uma identidade cultural. Nela mergulhamos para nos sentirmos enraizados, para sentirmos que não vogamos à toa e sem face. As obras emprenham nosso imaginário e vão engendrando narrativas que nos orientam, e mesmo nos coagem, a assumirmo-nos como filhos dessa ou daquela terra. Porém, quando se mira, obsessivamente, esta capacidade produtiva do discurso literário e fixa-se como mister deste o produzir/refletir o ethos de uma coletividade, está-se restringindo a ação dos autores (“só poderás escrever sobre tua aldeia”) e o arco de temas da literatura (“a literatura deve tratar de temas locais”). É neste ponto em que o belo espelho torna-se cárcere.
Vejamos, como exemplo, o que seria literatura piauiense segundo um crítico abalizado, Herculano de Moraes: “Literatura Piauiense é o conjunto ou acervo de obras literárias registradoras das emoções, das paisagens geofísicas, humanas e sociais, de memória e do comportamento do povo do Piauí”.
Não é preciso muito esforço para se desmontar tal conceito, já que ele contempla, basicamente, uma literatura de cunho regionalista. Seguindo-o à risca, Elio Ferreira deixaria de pertencer à literatura piauiense no momento em que escreve um poema sobre o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará: tornar-se-ia um autor da literatura… paraense. O próprio Herculano Moraes põe em crise aquele conceito ao inserir em seu escopo Mário Faustino (p. 133-138, tomo II). Mas teria o crítico outra saída? Deixaria de fora de sua Visão Histórica da Literatura Piauiense Faustino e os demais escritores que não exploram temas locais nem se valem de vocábulos regionais? Tomaria mesquinhamente como um critério basilar o local de nascimento do autor e, dessa forma, excluiria de seu livro, entre outros, Hardi Filho e Rubervam Du Nascimento?
A aporia em que Moraes se imiscui – de forma alguma um privilégio privado – é sintomática. Quando nos aproximamos da noção de literatura regional – e mesmo de literatura nacional – bordejamos perigosamente essa via. O patriotismo, disse Octavio Paz, não é apenas uma aberração moral – é também uma falácia estética. Quando digo literatura piauiense trago para o campo artístico uma noção geopolítica e histórica. O problema é que é impensável conter um grande autor nas bordas de uma literatura regional. Mário Faustino tem mais que ver com o inglês Dylan Thomas do que com Da Costa e Silva. Assis Brasil tem mais afinidade com o americano William Faulkner do que com Fontes Ibiapina. H. Dobal se afina mais com o irlandês W. B. Yates do que com Martins Napoleão. O.G. Rego deve mais o seu talento a certa tendência da romancística francesa – Sthendal, Flaubert, Proust – do que a um Abdias Neves. Os exemplos poderiam se multiplicar ad naseum como comprovação de que é redutor ler autores exclusivamente pela pauta da noção de literatura regional. A narrativa das continuidades que as histórias da literatura de diversos Estados forjam estão fadadas à incompletude ao fracasso, pois o “espaço” literário não coincide com o espaço geográfico. Uma prova cabal disso é o modo radical como Allan Poe mudou os caminhos da poesia francesa.
Não nos enganemos, porém: esse reducionismo que está no bojo da noção de literatura regional é demasiado evidente para deixar de ser reconhecido. Mas por que, mesmo apesar disso, continua a se falar sobre literatura regional? Eis uma pergunta complexa a que, neste espaço, só posso dar respostas provisórias.
Três motivos podem servir de resposta à indagação. Primeiramente, a necessidade de produzir zonas de pertencimento, isto é, de forjar identidades. Nesta perspectiva, a literatura piauiense responde à necessidade de se produzir uma identidade cultural piauiense. Em segundo lugar, as literaturas regionais resultam da experiência da margem, e nesta pauta são uma resposta ao sentimento de marginalidade cultural a que certos Estados brasileiros são relegados. Mesmo que se fale em literatura paulista, carioca ou mineira nunca estas noções serão estratégicas como o são literatura piauiense, maranhense ou cearense, pois Minas, Rio e São Paulo não ocupam a margem cultural no que concerne ao discurso literário. Em terceiro lugar, como nos ensina Foucault, quando se cria uma nova área de saber e instituições para abrigar este saber cria-se, também, um campo de poder; assim, a instituicionalização da literatura piauiense, promovida principalmente pela Academia Piauiense de Letras, permitiu (e permite) à elite cultural piauiense (dentro e fora da Academia) ocupar um espaço social privilegiado e influente na sociedade piauiense.
Resulta desta terceira resposta as implicações extraliterárias do conceito de literatura piauiense. Usar este conceito traz implicações políticas porque, a partir dele, se valida as regras de um campo de produção cultural cujo desenvolvimento depende do insulamento cultural (literário) do Estado. A quem, porém, interessa este insulamento?
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Wanderson Lima é professor e escritor