O contra-lei e outros poemas, Elio Ferreira

FERREIRA, Elio. O contra-lei e outros poemas. 2. ed. revista e aumentada. Teresina: Edição do autor, 1997.

ÁFRICA MÃE

1

África-Mãe do primeiro AMOR,
África-Mãe do primeiro DEUS,
África-Mãe da primeira MULHER,
África-Mãe do primeiro HOMEM,
África-Mãe de todos os POVOS,
África-Mãe da RAÇA HUMANA.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
ele era o rei,
ela era a rainha,
um outro súdito.
Um era sacerdote e curandeiro,
o outro guerreiro.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era cirurgião, o outro inventor
e ferreiro,
um outro poeta, cantor
e alabê.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era mineiro, o outro babalorixá,
um outro alufá.
Um era lavrador e vaqueiro,
o outro oleiro.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
uma era professora, a outra flandreira,
uma outra costureira.
Uma era rendeira, a outra doméstica
e comerciante.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era marinheiro, o outro advogado
e historiador.
Um era carpinteiro e pedreiro,
o outro construtor.

O meu avô e a minha avó
construíram as Américas,
O meu avô e a minha avó
construíram o Brasil.

2

O meu avô e a minha avó
foram escravizados na Europa,
e a Europa ficou rica,
e os ricos da Europa ficaram + ricos.

O meu avô e a minha avó
foram escravizados nas Américas,
e os colonos das Américas ficaram ricos,
e os filhos,
e os netos,
e os tataranetos
dos colonos ricos das Américas ficaram + ricos
+ podres-de-rico
+ podres.

O meu avô e a minha avó
construíram as Américas,
o meu avô e a minha avó

construíram o Brasil.

p

Elio Ferreira nasceu em Floriano, PI, em 1955. Poeta, capoerista e rapper. B.Boy do Movimento Hip-Hop no Piauí. Professor de literatura na Universidade Estadual do Piauí. Publicou Canto sem viola (1983); Poemartelos (1986); O contra-lei (1994).

Violado, Hermes Coêlho

COÊLHO, Hermes. Violado. São Paulo: Patuá, 2023.

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não houve resgate quando fui violado
as escaras da alma não pude curar
deixei-me deitar no campo de sonhos
refugiei-me neles sequei o pranto
cipó que usei para me salvar
a cada quimera desfeita eu descia um pouco
rumo à floresta densa pavores turvos
e descobri um novo mundo
no meio da fauna e flora multicolor
vivi amores calei rumores me permiti
dancei com indígenas nus na aldeia
fiz amor com botos sob a lua cheia
transformei minha dor em frenesi

p

.

a seca da cidade é meu lençol
envolve a pele em ondas
cicatriza as feridas da labuta
e dos esforços ocos dos dias
aceito o açoite do cerrado
deixo meu corpo marcado
alma vagando vazia

p

Hermes Coêlho nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Reporter e editor da TV Senado, em Brasília. Autor de Nu (poemas, 2002) e Violado (2023, poemas).