A geometria dos ventos, Álvaro Pacheco

PACHECO, Álvaro. A geometria dos ventos. Rio de Janeiro: Record, 1992.

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ÁGUA-FORTE

Um ideograma chinês
de conotação erótica:
um verso de Pound
transcrito em Mandarim
tatuado
entre as coxas mais brancas
como um aforisma de Confúcio, sem
qualquer razão, como
os nomes das mulheres,
Jaqueline, Eveline, Sein, Andrea –

é necessário um condom
para o ideograma, ou uma frase solta
no alfabeto celta –

enquanto isso
se suicidam adolescentes e um velho
de oitenta anos
assassina em Paris seus descendentes
para não deixar herança:

o ideograma permanece
tatuado em azul
entre as coxas mais brancas
como uma ave

(ou um aviso)

Rio, janeiro de 86

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MITOLOGIA

De poucas coisas a vida:
pequenos desejos: ver
uma grande árvore florindo,
alimentar uma criança,
abrigar-se da chuva,
dizer simplesmente bonjour
e contemplar no crepúsculo
os barcos dos pescadores convergindo,
como numa valsa,
mansamente para o lugar dos peixes.

Talvez não ser de nada possuinte,
apenas locatário provisório
de um riozinho de águas perenes
que corra entre árvores e gravetos
como uma estrada perdida
ou da montanha
à distância
coberta de neve e narcisos
ou de uma relíquia preciosa
que jamais fez nenhum milagre
como uma criança
e toda sua mitologia
de poucas coisas e simples desejos.

Rio, abril 91

p

Álvaro Pacheco nasceu no Piauí, fez os seus primeiros estudos em Teresina e veio para o Rio de Janeiro em 1950, onde fixou residência. Fundou a Editora Artenova Ltda., em 1962.
Estreou em livro em 1958 com Os instantes e os gestos, seguindo-se Pasto da solidão (1965), Margem rio mundo (1966), O sonho dos cavalos selvagens (1967), A força humana (1970), A matéria do sonho (1971), Tempo integral (1973), Homem de pedra (1975), Itinerários (1984) e A balada do nadador do infinito (1984).

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