Entrevista publicada originalmente na revista Amálgama, número 1, em janeiro de 2002.
Entrevistados por Hermes Coêlho, Adriano Lobão Aragão e Sérgio Batista, numa manhã de sábado, diante de lentas águas do Rio Poti, o poeta Elio Ferreira e a professora Lisete Napoleão ponderaram sobre literatura piauiense, poesia, hip-hop, folclore, bumba-meu-boi e o que mais apareceu na conversa. Elio é professor de literatura na UESPI, pesquisador da cultura e resistência negra no Brasil e no mundo, autor do livro de poemas O Contra-lei, já em sua segunda edição, onde mistura do hip-hop à poesia marginal. Lisete é Pró-Reitora de Ensino na UESPI, professora de literatura piauiense e pesquisadora de nosso folclore. Escreveu os livros Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto, Zamba e Histórias que Ouvi. Entre um gole de água mineral para o Elio e uma cervejinha para Lisete, perdidos no bairro Santa Sofia, sob pés de “segura-ela” e mangas, deu-se o interrogatório.
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Amálgama – Quais as características próprias da literatura piauiense?
Lisete – A característica que a gente vê, que a gente tem, no Piauí, é ter esse amor pelo Piauí. Porque são raros os escritores que deixam de falar. O Da Costa e Silva, sempre que falava, era telúrico mesmo. A marca maior deles, que eu vejo, é que sempre que eles usem temas universais, estão sempre voltados para o Piauí. Ao nosso Piauí ou à sua cidade natal.
Elio – Dentro do grande, do nacional, deve existir identidade. Eu sou do Piauí, mas eu sou do universo, eu sou cidadão do mundo. Então meu sentimento daqui vai partir também para o que eu tenho de universal e de humano, que existe em toda parte.
Lisete – Dentro da autoestima impor respeito e espaço.
Elio – O Piauí não está isolado. Porque o mundo ocidental… muita coisa que se escreve aqui vem do ocidente. Chega aqui e se adapta a uma outra realidade com elementos complementares da arte e da mentalidade de um povo, de um lugar em que está se vivendo.
Lisete – Nós sabemos o quê? Que nós temos toda uma influência de Portugal, que foi de onde nós passamos muito tempo ligados. Portugal, por sua vez, tem toda sua influência de onde? Do resto da Europa, onde o Garrett [Almeida Garrett, poeta e dramaturgo português do romantismo] e todo o pessoal iam e retornavam à Portugal… o próprio Bocage [poeta português, árcade pré-romântico] deixou essa influência para nós, que por nossa vez, à medida em que fomos aprendendo a caminhar, nós fomos absorvendo essas características e compondo nossas músicas, nossas poesias, dentro da nossa realidade.
Elio – Toda literatura dialoga com literaturas anteriores, como na própria vida existe esse elemento. O diálogo com conhecimentos anteriores. Hoje, a negritude não pode ficar descartada numa situação como essa. Portugal veio, mas tem-se de Portugal como se tem do índio, como temos do negro e de outros povos. E o momento da literatura autenticamente brasileira é quando a gente começa a perceber a dominação, a perceber que temos que pensar com a nossa própria cabeça, por nosso próprio mundo. Estabelecer que a realidade de Portugal veio até aqui, mas temos de Portugal como temos também da África, do índio. Então, a gente tem que ver de outra maneira. Ver com os nossos próprios olhos, onde está a questão de identidade. E o que vai marcar a literatura brasileira hoje, a literatura do mundo, é pensar com o olhar do dominado. Então não se pode passar a vida inteira pensando como europeu. Se tem essa estrutura, a gente modifica isso. A gente fala outra coisa…
Lisete [interrompendo] – Ver o que eles têm e construir a nossa realidade.
Elio – É claro. No mundo e na literatura, as culturas dialogam com outras. Deve haver um mundo miscigenado.
Amálgama – A antropofagia na prática?
Elio [gesticulando muito] – A antropofagia da prática. O que é que eu tenho de negro? Eu tenho de negro isso. O que é que eu tenho de índio? Eu tenho de índio isso. O que é que eu tenho de europeu? Eu tenho de europeu isso. Então são as coisas que eu preciso viver nesse momento.
Lisete – O que nós, brasileiros, temos disso…
Elio – Agora eu, como negro, assumo hoje mais o quê? A questão da negritude. Porque essa é minha maior herança.
Lisete – Embora essa face gritante seja do negro, você não pode negar o que tem do índio e do branco.
Elio – Renegar o índio nunca! A minha ancestralidade também está no presente. Eu fiz um estudo da minha ancestralidade e descobri que a minha bisavó foi pega “a dente de cachorro”, que era uma índia. Temos que resgatar esses nossos valores que foram apagados. Temos que resgatar isso para que tudo conviva em pé de igualdade. Essa relação de diálogo e respeito a todas as culturas e a todas as religiões. Isso é o que se busca. Por que falou-se em negritude e na cultura do índio? É para que sejam respeitadas num mesmo nível que o branco. O branco é branco, e é bonito. O negro é negro, e é bonito. O índio é bonito. A cultura do índio é tão importante quanto a cultura do europeu. O que a literatura brasileira faz nos últimos tempos? É buscar uma linguagem aproximada da que o povo fala, quebrar valores também. Não podemos passar o tempo todo discutindo os valores europeus. O que há de Piauí aqui? O que o pessoal do Piauí está escrevendo? A gente deve entender o Piauí, esse conceito, a partir do que se tem escrito. O cordel é uma marca forte no Piauí. E o que marca o Brasil nesse cordel é a oralidade do poema. O poema para ser gritado.
Lisete – Devemos nos arrancar desse marasmo, porque ele é analisado na Sorbonne e no exterior, mas nós conhecemos pouco e trabalhamos pouco o cordel. Até que a nossa Universidade Estadual começou a resgatar e tentar fazer um trabalho junto ao próprio Pedro Mendes Ribeiro, que todos os anos faz um encontro internacional de cordel aqui no Piauí.
Elio – O que precisamos resgatar é a nossa história. Resgatar a memória do Piauí. Essa questão da piauiensidade é importante. Temos que nos identificar para nos assumir como nós somos e conquistar um espaço também fora daqui. Porque o que acontece é isso aqui: nós somos a periferia. Assim como o negro é tido como periferia, assim como o índio é tido como periferia, essas culturas… E o Piauí em relação ao Brasil é periferia…
Lisete [protestando] – Ainda é periferia. Ainda…
Elio – Considera-se periferia. Estamos aqui num isolamento. O Piauí ainda é tido como o estado mais atrasado, mais pobre. Ainda é visto assim. Então voltar a nossa visão para nós mesmos é importante. O amor próprio, e amar aos outros, para começar a conquistar espaço fora. Agora tem-se que fazer alguma coisa aqui.
Lisete – Mas já estamos melhorando, já há um avanço. A preocupação está muito maior.
Elio – Mas tem que ter investimento! Investimento cultural! Pra quem faz literatura é muito pequeno.
Lisete – É pequeno, eu sei. Mas e quando não se tinha nada? E hoje já se tem.
Elio – Mas são pequenos.
Lisete – E quando não se tinha nada?
Elio – Sim. Mas não se está nesse ponto mais. Você vai, por exemplo, ao Ceará ver a quantidade que eles investem em literatura lá. Todo dia tem gente de fora pra falar de literatura lá. O que o Piauí não faz é isso.
Lisete – Mas nós estávamos falando de produção.
Elio – Mas o diálogo pra fora é válido, porque é preciso isso para levar a nossa literatura para outros lugares. Não devemos ficar ilhados aqui. Precisamos nos comunicar com outras literaturas.
Lisete – Nós precisamos conhecer é a nossa casa. Primeiro trabalhar a nossa casa, dentro. A partir desse momento é que nós podemos ir lá pra fora e abrir as nossas fronteiras. Mostrar que nós somos bons também.
Amálgama – Elio, os seus trabalhos sobre Torquato Neto e Mário Faustino foram publicados em jornais. Como você vê o espaço dado a esse tipo de trabalho nos jornais?
Lisete – Os jornais de grande circulação você sabe que têm que ter um retorno financeiro, e esse tipo de matéria não dá.
Elio – Mas o que é que falta para isso? Onde é que está o vazio? Por isso é que o vazio é grande. Naquela época, por exemplo, quando eu fui fazer as performances de poesia de rua, é porque não havia espaço, meu amigo! O poeta se sente sufocado, então precisa de um espaço, porque falta isso num jornal. O que se faz pra publicar hoje? Eles não publicam mais.
Amálgama – O que as agremiações e academias estão fazendo nesse sentido?
Lisete – A Academia de Letras do Vale do Longá tem um espaço no jornal O Dia, onde você tem espaço pra publicar. A UBE também tem um espaço…
Amálgama – Não existe um exagerado elitismo dentro dessas academias?
Elio – Toda academia é elitista.
Lisete – Até porque há limitações no número de cadeiras.
Elio – Essa questão no Brasil hoje é uma questão de amizade. É claro que todo grupo gira em torno de interesses, ou pelo menos de visões parecidas, estéticas e ideológicas, mesmo que surjam divergências dentro do grupo. Mas a academia parece algo mais fechado ainda. Há um padrão, você tem que ser “assim” pra ter uma vaga: “esse aqui não cabe aqui porque foge dos nossos padrões”. Quando é um movimento, há mais abertura. E tem a política no meio ainda, valores morais, econômicos, políticos, que sempre influenciam na academia.
Amálgama – Elio, como foi o episódio no qual você ficou nu durante uma apresentação em Campina Grande?
Elio – Em Campina Grande foi o seguinte…
Lisete [interrompendo, risos]– Não estava no script…
Elio – Não estava. Não havia nada premeditado. Mas é a questão do Contra-lei, né? Era aquela coisa de criar um clima que dissesse da nossa angústia da época. Então a coisa foi acontecendo…
Amálgama – Foi no dia do massacre no Carandiru?
Elio – Foi no dia do massacre no Carandiru! Eu tinha visto na televisão e eu disse: que país é esse? Em que mundo nós estamos vivendo? Eu passei a viver toda a circunstância da poesia. Aquela relação de fazer O Contra-lei e você incorporava não apenas o poema como um indivíduo que a poesia te fazia aquilo.
Lisete – Tu fizestes isso em sã consciência? Não tinha tomado nada?
Elio – Não, não… Isso aí é à parte… [risos]
Lisete – É muita coragem… [risos]
Elio – Mas quando você pinta a cara, você não é mais você. Parece que baixa um fogo assim, em cima de você. Dos seus ancestrais, sabe? Quando o poeta fala, ele fala por muitas vozes, não é só por ele não. É muita gente falando através dele.
Amálgama – Mas lá na hora, como foi?
Elio – Na hora, foi o seguinte, eu disse: “que país é esse onde acontece esse tipo de coisa?” E eu comecei a declamar: “eu não sou o presidente, eu não sou o governador…” aí começaram a aparecer as imagens do Brasil, um bocado de sacanagem, de miséria, de violência…
Lisete – Mas essa alucinação era real?
Elio – Era o que eu estava falando na poesia. Era uma coisa real. E eu me perguntava: “que país é esse?” Aí desci as calças e peguei no saco e mostrei pro pessoal. “Que país escroto é esse?” Aí as meninas gritavam: “professor!!!” e botavam a mão no rosto, assim, mas ficavam vendo tudo com os olhos entre os dedos… [risos] Mas não é que você faça a coisa pra chocar. É uma coisa que acontece… A coisa foi crescendo…
Lisete – O meu questionamento é esse.
Amálgama – O que a Lisete quer saber é se você estava drogado.
Elio – Em primeiro lugar, quando eu vou para as minhas performances, eu não bebo.
Lisete – Mas, Elio, veja bem. Era um público enorme. Qual era o público?
Elio – Tinha umas cinco mil pessoas, não tinha não? Tinha não. Era o Encontro Nacional de Letras…
Amálgama – O ENEL de 1992, em Campina Grande.
Elio – Em São Paulo, na USP, também aconteceu outro lance assim, parecido. O que agredia não era só tirar a roupa. Era também o texto. Na Paraíba, quando eu ia pra praça, o pessoal começava a gritar: “eu vou comer a tua mãe, eu vou comer o teu pai…” [cantando, trecho do poema Canibal, do livro O Contra-lei]
Amálgama – Então a poesia embriaga?
Elio – Embriaga. A poesia te envolve. Porque a poesia do contra-lei não é só o texto poético. Há a incorporação de um personagem. Viver a poesia na dimensão em que escrevo.
Lisete – Mas lá [em Campina Grande] estava o professor Elio…
Elio [interrompendo]– Não! Professor não! Professor é na sala de aula. Eu sou o poeta!
Lisete – Mas você estava representando a universidade…
Elio [interrompendo]– Não! Eu sou o poeta. O Elio é o professor lá na sala de aula. Se eu saí de lá, eu sou mais eu, eu tô rua, eu sou outra entidade.
Lisete – Se você estivesse representando a universidade, deveria ter tido a postura de professor.
Elio – Mas eu sou é o poeta. A entidade é outra coisa. O cara é administrador de empresas, ou é empresário, mas faz uma peça de teatro. Lá no palco, ele é o ator ou é o empresário? Eu tô em casa, eu estou com minha família, eu sou um pai de família. Mas se eu tô na rua falando poesia eu sou o poeta. Eu não sou mais pai de família.
Lisete – Mas se eu for a um seminário representando a Universidade Estadual do Piauí, ali eu sou a representante da universidade, eu sou a professora Lisete.
Elio – Enquanto estiver em sala de aula!
Lisete – Não. Enquanto eu estiver ali, inclusive sendo financiada com passagem paga, com estada paga pela universidade.
Elio – Mas o dinheiro não é da universidade, o dinheiro é do povo, é do Brasil…
Lisete – Mas se eu for para um teatro…
Elio [interrompendo]– Mas o meu trabalho como professor é na sala de aula.
Lisete – Você estava nu na conferência como professor ou como escritor?
Elio – Eu estava como professor e como convidado, poeta, a falar poesia! Eu estava na pauta como poeta, pra falar poesia. Eu não tirei a roupa na sala de aula. Eu tirei num espaço propício pra fazer arte!
Amálgama – A agressividade de sua poesia nasce de alguma frustração social?
Elio – O que eu falo não sou eu que falo. Talvez o que as pessoas gostariam de dizer, ou o que as pessoas dizem. Para os meus poemas, eu tiro muito o que as pessoas dizem na rua. Eu sou negro, venho de uma classe social pobre, no nordeste, no Piauí, Floriano. O que você escreve é tua vida. Machado de Assis dizia que o menino é pai do homem. Eu convivi em oficina de ferreiro. Minha família era toda Ferreira, meus tios, minha mãe era flandeira, meu pai ferreiro, e eu cresci naquele som do metal e do palavrão, que quando você tá puto com alguma coisa você xinga. Então procurei alguma coisa que dissesse da angústia e do sofrimento do povo, da realidade que eu vivia. Uma maneira mais forte de tocar as pessoas.
Amálgama – E como está sua poesia hoje?
Elio – Minha poesia hoje não está mais dentro daquele tom. É um momento que você cria uma espécie de ser que você incorpora. Você escreveu aquela fase, você esgotou aquilo ali. É uma coisa de momento.
Lisete – Eu acho que houve um amadurecimento. Acho o Elio mais maduro, mais consciente.
Elio – Eu preciso dizer de uma maneira que marque o meu tempo. Uma coisa que veja o mundo com a linguagem das pessoas da minha época. Do meio em que eu convivo. Eu vivo num momento difícil em que as pessoas estão buscando se situar no mundo, num lugar ao sol, e o mundo tem que ser pra todo mundo. Por que essa grande visão na miséria total, sem acesso a escola para uns, e outros com tanto? Então o contra-lei era isso. Porque a lei estava muito errada! [bem enfático] E ainda está muito errada. E eu vivi numa estrutura que eu conhecia muito tudo isso. Eu trabalhei em repartição pública, eu nunca fui só professor, porque não dava pra comprar meus livros. Eu fui educado numa família em que meu pai era ferreiro, mas se comprava livro e tinha biblioteca em casa. Minha mãe ensinava a ler, também era professora, por isso lá em casa era cheio de gente. O “poemartelos” fala disso, e é muito de memória, porque eu pegava também muito o mito do povo. Houve um crime muito hediondo na minha cidade. O cara matou outro e pinicou todinho. O que eu sei dessa história é que aparecia o demônio na casa dessas pessoas e o cara que fez esse crime era casado com uma tia minha, e sofreu muito por isso. No “poemartelos” eu falo dessa coisa. Muito som, muito martelo. Imitar o som do ferro. Eu criei uma poesia sonora pra ser falada imitando o som do ferro.
Lisete – Hoje você usa muito o estilo do Rap, não é?
Elio – O Rap foi um momento do Contra-lei. Quando eu escrevi O Contra-lei, não tinha nenhum contato com o Rap. Comecei a ter no final de 94. Aí o pessoal do Rap, do Hip-Hop, viu meu livro e dizia: “Professor, vamos cantar isso aí ”.
Amálgama – Então, na verdade, a inclusão do Hip-Hop ao Contra-lei foi posterior ao livro?
Elio – Foi posterior. Depois eu publiquei a segunda edição já com esse contexto. Mas eu acho que já tinha alguma coisa de Rap no ouvido, por causa da poesia pra ser falada, porque quando você escreve, além das coisas do passado, tudo que há de presente no som você coloca no seu texto. Eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira. Era sempre assim, ouvindo vários tipos de música.
Amálgama – Mas foi o Rap que incorporou isso de maneira bem característica para sua poesia.
Elio – Exato.
Amálgama – Então como você vê a essa situação de respeitar uma MPB que torce o nariz para o Rap?
Elio – Eu não sei por quê. Pois o Hip-Hop é um ritmo, um ritmo negro, dos negros que viviam nos guetos dos Estados Unidos, na periferia, e Rap quer dizer o quê? Poema em ritmo. Poema pra ser cantado.
Lisete – Mas eu acho que há essa marginalização porque eles levam geralmente à anarquia, à droga, à…
Elio – O Rap não tem nada disso! O Rap é o contrário. O Hip-Hop…
Lisete – Mas as gangues e as confusões que tem no Rio de Janeiro…
Elio – Aquilo é outra história.
Lisete – Mas há uma mistura, pois inclusive é muito parecido.
Elio – Junta-se o Rap ao Hip-Hop. O Hip-Hop é um movimento educativo. É a visão de educar. “Faça a Coisa Certa“, lembra do [filme de] Spike Lee? Está diretamente ligado a isso, a educar. Tirar o sujeito da pior. Mas é claro que existe o Rap gangster, também. Não vou dizer que só há bons. Mas a força toda do Hip-Hop é tirar o cara da lama.
Lisete – Mas o próprio Hip-Hop tem também as gangues.
Elio – Não. Não tem não. O Hip-Hop é o seguinte: são pessoas educadas, gente da periferia, meninos que estudaram a história do negro, a condição de…
Lisete – Inclusive o Gabriel O Pensador faz isso…
Elio – Mas o Gabriel O Pensador não é do Hip-Hop. Ele faz Rap, mas não é do Hip-Hop, do movimento. Hip-Hop é um movimento que, em primeiro lugar, é música para divertir, para conscientizar, para educar, para contar a sua história, do momento, da periferia. Os Racionais mostram o cara quando entra no tráfico, mas também quando se dá mal no final. É instrutivo. É a consciência ideológica. Estudar a questão do negro, a questão social da miséria. Evitar entrar no mundo do álcool, da droga, porque aquilo vai te levar para um caminho que pode ser sem volta. Mas o Rap também pode se aproximar pra dialogar com as gangues, porque a gangue é apenas um fator social.
Amálgama – Não seria então a música que leva à criminalidade, ela só reflete…
Elio – Reflete a realidade. A condição de ser. Por que o sujeito está no crime? Porque não teve oportunidade, na periferia, para ele. É algo altamente político, algo revolucionário. É pra brincar, educar e pensar sempre. É a mesma situação o negro e o pobre. A visão é essa. Mas não se abre espaço na grande mídia para o Hip-Hop. Não se abre para Racionais, para Câmbio Negro, para Rio Radical Rap, que tem até um cara do [bairro de Teresina] Monte Castelo, que eu sempre converso com ele, o Yuri, no Rio de Janeiro. A polícia de Minas Gerais deu o maior cacete e quase mataram o cara, deixaram o cara jogado lá porque tinha um verso dele que dizia “Foda-se a polícia, foda-se a polícia”.
Amálgama – Lisete, e como anda a pesquisa folclórica?
Lisete – É um trabalho que estamos desenvolvendo desde um curso em Belo Horizonte, que foi Leitura e Produção de Texto. Naquela época eu viajava muito pelo interior, trabalhando pela UESPI.
Elio – Eu acredito que nossa base, nossa cultura está sempre no interior…
Lisete – E eu tenho difundido isso pra fora. Eu recebi agora em Lisboa um cavaquinho, que é um prêmio cultural de lá pelos trabalhos que faço. Eu confesso que além de ser uma defensora e uma pessoa que trabalha com a literatura piauiense, eu sou uma das pessoas que dá a vida e o sangue, qualquer coisa, para que a gente continue trabalhando a cultura de um modo geral. Eu não me preocupo se ela está elitizada ou não. Eu só me preocupo se ela chega ao povo. Que o povo, com isso, consiga fazer uma análise crítica. A nossa cultura é riquíssima e apaixonante. O meu trabalho me ajuda a descobrir isso cada vez mais.