Areias

MOURA, Francisco Miguel de. Areias. 2.ed. São Paulo: Life editora, 2021.

ESPERA-ESFERA

Esperar… A virtude não se altera.
Esperando se perde, mas se alcança;
se a vida toda é círculo de espera,
não fiquemos aquém de uma esperança.

Eis a fórmula vital: Tanto se alcança
quanto mais o desejo põe-se à espera.
E nessa rítmica e terrível dança
compomos, decompomos nossa esfera.

Não cantemos perdidas esperanças.
Esses desgastes ficam nas andanças
das esferas, excêntricas esferas.

Alma sedenta, em que te desalteras?
– Mourejando no amor, de tantas eras,
cultiva o bem e espera as esperanças.

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PARÓDIA A CAMÕES
(Referência às revisões salariais da classe trabalhadora, em 1965)

Quantos anos de escravo “jó” servia
o patrão só por simples bagatela!
Mas servindo ao patrão, servia a “ela”,
enquanto o preço do feijão subia.

Os dias vinham, a esperança ia,
porque a fome era maior do que ela.
Mas o patrão mais duro, com cautela,
em lugar de aumentar, nem prometia.

Vendo o triste operário que com enganos
lhe era negada a “revisão”, embora
muito justa quisera, e merecida,

continua a servir… (mais quantos anos?)
dizendo: Só quisera que não fora
para a morte o “aumento”, mas pra vida.

p

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Capa: Hardi Filho, ilustração da 1ª edição, 1966

.
Francisco Miguel de Moura nasceu em Picos, PI, em 1933. Publicou as obras Areias (poemas, 1966); Linguagem e comunicação (reunião de ensaios sobre a obra do romancista O.G. Rego de Carvalho, 1972); Pedra em sobressalto (poemas, 1974).

A música imóvel do tempo

FERREIRA, Climério. A música imóvel do tempo. Teresina: Fundação Quixote, 2021.

QUANDO EU ME ENCONTRAR

Quando tomo café
Às vezes lembro-me de alguma música
E fico me amaldiçoando por não saber cantar

Quando estou na praia
Sinto saudade de um rio manso
Correndo macio sob o arco da ponte

Quando a chuva cai forte
Sinto falta de um dia de sol
Iluminando o vermelho dos telhados

Qualquer dia hei de me encontrar
Exatamente onde estou
No momento em que vivo

E ao me encontrar me perguntarei
Pelas coisas que não estão comigo
Nesse exato agora

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A MÚSICA IMÓVEL DO TEMPO

O tempo está absolutamente parado
E eu não penso em nada
Deixo que a vida teça a sua música
Na pausa oculta deste instante

Isso é tudo o que me basta
A melodia do pensamento afinado
Ao suave ritmo das horas
Na pauta do tempo absolutamente imóvel

P

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Editor: Kássio Gomes
Capa e projeto gráfico: Antônio Amaral
Editoração eletrônica: Alcides Amorim

Teoria do simples

HARDI FILHO. Teoria do simples. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1986.

Poemas distribuídos em três seções: O entendimento, As emoções e Os atos.

MAKTUB

Para que eu fosse e visse a sumição
das rubras ondas circuloconcêntricas,
encheram-me de luz
os olhos terra
e pedra me lançaram neste mar.

Hoje um gado faminto me rumina
e minha face aquática se enruga;
plantaram-me, filhei,
virei pastagem,
criei fundas raízes neste mar.

Viver é simplesmente conduzir
dores dagora e dores do horizonte.
Um dia sem talvez
(está escrito)
serei à força expulso deste mar.

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MÓDULO 3

Não compactuar:

Com movimento de mãos
abertas para o que sobra;

com olhares premoldados
na forja da indiferença;

com protestos deglutidos
em senhoris curvaturas;

com pernas em marcar-passo
na guarda ou na retaguarda;

com caimento de braços
sem acordo coletivo;

com o silêncio das bocas
quando o grito é a salvação.

P

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Capa e ilustrações de Albert Piauí
Prêmio especial “Odilo Costa, Filho” – 1981. Academia Piauiense de Letras

Ephemera

DOBAL, H. Ephemera. Teresina: Edufpi, 1995.
– Poemas

CANTIGA DE VIVER

Sozinho na cama
um homem espera sua hora.
A inesperada hora de tantos.

A vida é uma cantiga triste
mais triste e à-toa que a das andorinhas
– Las oscuras golondrinas
tão mal vivida
tão mal ferida
tão mal cumprida.

A vida é uma cantiga alegre:
o primeiro sorriso de cada filho
e todos os microamores
que inutilizam
a vitória da morte.

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PROFANAÇÃO DO CEMITÉRIO DA PRAIA DO COQUEIRO

I – Os mortos

Cadáveres anônimos vêm dar nessa praia pobre
são mortos que as correntes do mar
trazem de outras praias, trazem talvez do Ceará,
são corpos que os dias de morto no mar vão decompondo,
é um corpo morto semi-comido pelos peixes
meio mutilado pelos caranguejos.
É só um corpo morto – sem nome
sem história
sem CPF.

II – O cemitério

Mãos anônimas
mãos caridosas
mãos cristãs
cavam covas na areia
preparam um cemitério pobre
para colher os finados desconhecidos
os mortos anônimos que chegam à deriva das águas
ou alguns que morrem em terra firme
mas não têm onde cair mortos.
É só um cemitério pobre
mármore
só o mármore das areias
flores
só as flores de espumas
que as ondas deixam na praia.
É só um cemitério pobre
pouca distância separa o fósforo
dos mortos do fósforo do mar.
É só um cemitério pobre
onde a parte mortal de cada um
onde a tristeza da carne
se liquide em paz.

III – A profanação

Sem temor de Deus
sem respeito aos mortos,
sem respeito à morte
nesse chão dos mortos,
como se fosse chão de ninguém
um invasor fez construir uma casa
não casa de morar
casa de farrear.
Solo profanado
um cemitério pobre
pobres posseiros mortos
despejados de seus túmulos

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P

H. Dobal (Teresina, 1927 – 2008), poeta, contista; autor, dentre outros, de O tempo consequente (poemas, 1966); O dia sem presságios (poemas, 1970); A província deserta (poemas, 1974); Um homem particular (contos, 1987). 

2013 e a literatura no Piauí

Adriano Lobão Aragão

Um balanço dos acontecimentos literários de 2013 no Piauí, ou em qualquer outro lugar, é uma tarefa árdua e inquietante. Qualquer esforço nesse sentido será sempre um esboço, pois o risco de omitir lançamentos e eventos é constante, por conta das limitações de informação e da perspectiva pessoal. Em outras palavras, nenhum mapeamento de atividades literárias é onisciente e a falibilidade apresenta-se, talvez, como sua marca mais forte. O interessante, porém, é que as inevitáveis lacunas e omissões sejam complementas por outros textos, de outros autores, que, em conjunto, possam dar uma melhor dimensão do que foi o ano de 2013 no âmbito da literatura nestas paragens.

Pois bem, em 2013, tivemos a continuidade dos salões de livros organizados pela Fundação Quixote, tendo o Salipi como referência. Realizado durante o mês de junho, na praça Pedro II, e apresentando M. Paulo Nunes como principal homenageado, o Salipi contou com a presença de Antonio Carlos Secchin, Evanildo Bechara, Francisco Alves Filho, Gisleno Feitosa, José de Nicola, Lúcio Asfora, Marcos Bagno, Mac Dowell Leite, Roberto Muniz, dentre vários outros. Em Parnaíba, o Salipa ocorreu no Porto das Barcas, em novembro. Homenageando Evandro Lins e Silva, o evento recebeu Affonso Romano de Sant’anna, Demetrios Galvão, Fabrício Carpinejar, Fides Angélica Ommati, José Galas Filho, Marina Colasanti, Thiago E, Zuenir Ventura, dentre outros. Em setembro, o Salipicos, homenageando Fontes Ibiapina, contou com Eneas Barros, Salgado Maranhão, Wellington Soares, Paulo Lins, Jasmine Malta, Lívia Diniz, Luiz Romero Lima, dentre outros. Entre os encontros literários mais restritos, além dos Cafés Literários promovidos mensalmente pela revista Revestrés, Teresina também contou com o tradicional Sarau do Cineas, promovido pela Oficina da Palavra, e com os saraus organizados pela Sociedade dos Poetas Por Vir.

No âmbito dos periódicos literários, a revista Desenredos prossegue suas atividades, exclusivamente no meio digital, aliando a publicação de artigos acadêmico-científicos e textos de criação artística; a revista Revestrés aposta no formato impresso voltado para o grande público interessado em arte e cultura, conquistando a cada edição uma abrangência maior. As suas instigantes entrevistas costumam ser bastante comentadas e, muitas vezes, dividem opiniões. E 2013 assinalou o surgimento de outra revista, a Acrobata, que além de literatura e artes plásticas, alia um forte interesse por cinema e outras manifestações audiovisuais, bem como uma forte tendência para o intercâmbio cultural com outros estados, sobretudo São Paulo, onde marcou presença na Balada Literária. Também em São Paulo, a editora É Realizações, prosseguindo com a publicação da obra completa do renomado crítico literário José Guilherme Merquior, lançou o volume Razão do Poema, contando com posfácio de Wanderson Lima.

Correndo o risco de cometer diversas e notórias omissões, assinalamos os lançamentos dos livros de poemas Cabeça de Sol em Cima do Trem, de Thiago E; Às Vezes, Criança, de Rubervam Du Nascimento e Sérgio Carvalho; Pedra de Cantaria, de Graça Vilhena; Poemas Insidiosos, de Caio Negreiros; Objeto Presença, de Luiz Ayrton Santos Junior; Ode ao Amor Desvanecido, de Gilvanni Amorim; O Mapa da Tribo, de Salgado Maranhão; a 2ª edição, revista e ampliada, de Sonetos e Retalhos, do poeta oeirense Gerson Nogueira Campos, falecido em 1971; e a coletânea 15 Poetas de Oeiras, organizada por Rogério Newton. Façamos também o registro do lançamento do livro-reportagem Cinturão de Fogo, de Toni Rodrigues; das ficções O Buraco e Outras Histórias, de Fernanda Paz; O Rato da Roupa de Ouro, de Dílson Lages Monteiro; No Rumo das Areias, de José Gregório da Silva Júnior; Provisório (para sempre), de Laerte Magalhães; além da 13ª edição, revista e ampliada, de Literatura Piauiense, de Luiz Romero Lima. E por falar em publicações, vale lembrar que a Fundac continua, ano após ano, devendo a edição das obras vencedoras de seus últimos concursos literários.

Por fim, mesmo em face de tantos acontecimentos e lançamentos, o ano de 2013 ficará irremediavelmente marcado pelo lamentável falecimento de O.G. Rego de Carvalho.

P

Publicado no jornal Diário do Povo, Teresina, 17 de dezembro de 2013

Adriano Lobão Aragão é poeta e professor. www.adrianolobao.com.br

Tá pronto, seu lobo?

MACHADO, Paulo. Tá pronto, seu lobo?. 2.ed. Teresina: Corisco, 2002.
– Poemas

POST CARD 57/77
à memória do artista plástico Fernando Costa

na praça marechal deodoro
às nove horas falavam
da udn e do american-can

na praça marechal deodoro
às nove horas há velhos com suas memórias
recompondo o tempo

um louco jaime fazia ponto no cruzamento
da barroso com a senador pacheco sem saber
que existia a guerra fria

no cruzamento da barroso com a senador pacheco
há um sinal que não raro
encrenca desafiando a rotina

quinta-feira era dia de matar o tempo
na praça pedro segundo enquanto os sapos
copulavam nos lajedos do tanque

quinta-feira é um dia qualquer
e na praça pedro segundo a mudança notável
é a da posição da estátua que parece sorrir

nas tertúlias do clube dos diários
uma geração embarcava no marasmo
esquecendo tudo mais

não há tertúlias no clube dos diários
as baratas medrosas saem das bocas-de-lobo
admiram os caixotes de cerveja empilhados e fogem

nos canteiros da avenida frei serafim
os cupins construíam suas casas
fiando estranha quietude

nos canteiros da avenida frei serafim
putas acenam com gestos medidos
a fome é mais forte que o medo

no bar carnaúba o sol roía o marrom
das tabículas das mesinhas
e os homens de casimira cinza faziam planos

não há bar carnaúba mas os homens
de casimira cinza continuam fazendo planos
cogitando não aceitando irreverências

na paissandu os bêbados
pregavam a subversão
e um bolero esquentava as entranhas da noite

a paissandu agoniza
os bêbados já não falam tanto
e a frieza da noite venceu o calor dos boleros

nas calçadas da simplício mendes
um rosto magro madalena deixava brotar
estranhamente um sorriso largo de espera

madalena morreu de câncer
e nas calçadas da simplício mendes
nada há que lembre sua presença

no mercado central pretas carnudas
vendiam frito de tripa de porco
fígado picado e caninha

no mercado central negrinhos descarnados
catam laranjas e limões podres
em plena manhã de maio

no cais do parnaíba piabas prata
saltavam das águas barrentas
como no sonho dos meninos

o parnaíba continua lavando as almas pagãs
dos meninos fujões
roendo as pedras do cais com a mesma fúria

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ARQUIVO
ao contista M. de Moura Filho

adão andou nas mãos dos paisanos
e foi encontrado na praça da liberdade
como um mamulengo esquecido detrás do palco:
olhos abertos, boca cerrada, músculos petrificados,
sangue coagulado nas narinas.

adão virou manchete
na pose três por quatro
na última página de o dia

hoje, é um número qualquer
arquivado
à espera dos cupins.

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Paulo Henrique Couto Machado nasceu em Teresina, Piauí, em 1956. Advogado. Defensor público. Poeta e contista. Pertence à Geração Pós-69. Participou de coletâneas e antologias. Ganhou alguns prêmios literários. Na década de setenta, fez política estudantil e editou, ao lado de companheiros de geração, o jornal mimeografado “ZERO”. Integrou o grupo responsável pela edição do jornal alternativo “Chapado do Corisco”, em 1976 e 1977, em Teresina. Publicou Tá Pronto, Seu Lobo? e A Paz do Pântano, livros de poesia. Integra a comissão editorial de literatura da revista Pulsar.

Baião de todos

Baião de todos. Teresina: Corisco, 1996.

Coletânea reunindo poemas de Alberto Araújo, Alcenor Candeira, Barros Pinho, Caio Negreiros, Carmem Gonzales, Carvalho Neto, Chico Castro, Cid Teixeira, Cineas Santos, Climério Ferreira, Diogo Fontenelle, Elias Paz e Silva, Elio Ferreira, Elmar Carvalho, Emerson Araújo, Fátima Mendes, Fernando Basto, Flávio Sousa, Francisco Miguel de Moura, Fred Maia, Glauco Luz, Graça Vilhena, Halan Kardeck, Hardi Filho, H. Dobal, Jamerson Lemos, Kenard Kruel, Lourismar, Marleide Lins, Menezes y Morais, Nelson Nunes, Paulo José Cunha, Paulo Machado, Ral, Ramsés Ramos, Rogério Newton, Rubervam Du Nascimento, Salgado Maranhão, Valadares, Victor Virgilius, William Melo Soares

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NO TROPEL DO CARROSSEL
[Diogo Fontenelle]

Os cavalinhos do carrossel,
Presos por fios de ouro,
Descem ao mar e sobem ao céu
Carregando os meninos louros
Vestidos de helenos
E os meninos morenos
Vestidos de mouros.

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[Fred Maia]

Se você
tivesse acreditado
na minha brincadeira
de dizer verdades
teria ouvido
verdades que teimo
em dizer brincando
falei muitas vezes
como o palhaço
mas nunca desacreditei
da seriedade
da plateia que sorria

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O MURO
[Hardi Filho]

A vida pinta no muro o vermelho
perigo a todo instante dia a dia
e pinta o verde, em céu azul, nuns ricos
bordados de pureza e fantasia.

Drama aventura evento a vida pinta
no muro o preto o amarelo o lilás;
refração de água e sol ela reflete
esta coisa indecisa entre ânsia e paz:

arco, armação, parábola, temores.

A morte pinta no muro outras cores.

Aporias do conceito de literatura piauiense

Wanderson Lima

“Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana” – diz-nos Antonio Candido – “há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos diferentes Estados”. No Piauí, não se foge à regra: há certas recorrências estilísticas, certas continuidades temáticas que, se não nos são exclusivas, não estão espalhadas nos quatro cantos.

Mas Candido, sempre cauteloso, não afirma que essa diferença com que a literatura se apresenta em diferentes Estados gere sistemas literários autotélicos. Pensar em estéticas nacionais e regionais é um equívoco do qual Candido não partilha; em seu sistema, à absorção de uma nova estética preside um processo dialético que conjuga questões locais aos princípios daquela estética. Assim, o romantismo brasileiro não é igual ao francês, ainda que se inspire nele; por outro lado, uma vez que se trata de um processo dialético, o fato de os autores brasileiros redimensionarem temas e padrões românticos para fazê-los falar sobre nossa realidade não indica que o romantismo brasileiro constitua uma estética nacional. Em última instância, portanto, se falarmos em literatura regional, a peculiaridade desta seria de natureza temática, jamais estética: assim, só a literatura piauiense se empenharia em ficcionalizar o que se convencionou chamar – passe a palavra! – piauiensidade, isto é, um conjunto de traços construídos coletivamente através de variadas práticas culturais, assumidas sob o rótulo de identidade cultural piauiense.

A noção de literatura regional, portanto, tem de partir da concepção da literatura como expressão do espírito de um povo ou de um local – concepção justa, mais propensas a exagerações. Adotando este ponto de vista, consideramos que na literatura piauiense está contida a “alma” do povo piauiense. A literatura aqui é espelho em que o povo se constrói e se mira; é documento dos mais valiosos, porque está nele o que um povo pensa de si.

Dentro dessa perspectiva, a literatura abre um flanco de pertencimento fundamental na constituição de uma identidade cultural. Nela mergulhamos para nos sentirmos enraizados, para sentirmos que não vogamos à toa e sem face. As obras emprenham nosso imaginário e vão engendrando narrativas que nos orientam, e mesmo nos coagem, a assumirmo-nos como filhos dessa ou daquela terra. Porém, quando se mira, obsessivamente, esta capacidade produtiva do discurso literário e fixa-se como mister deste o produzir/refletir o ethos de uma coletividade, está-se restringindo a ação dos autores (“só poderás escrever sobre tua aldeia”) e o arco de temas da literatura (“a literatura deve tratar de temas locais”). É neste ponto em que o belo espelho torna-se cárcere.

Vejamos, como exemplo, o que seria literatura piauiense segundo um crítico abalizado, Herculano de Moraes: “Literatura Piauiense é o conjunto ou acervo de obras literárias registradoras das emoções, das paisagens geofísicas, humanas e sociais, de memória e do comportamento do povo do Piauí”.

Não é preciso muito esforço para se desmontar tal conceito, já que ele contempla, basicamente, uma literatura de cunho regionalista. Seguindo-o à risca, Elio Ferreira deixaria de pertencer à literatura piauiense no momento em que escreve um poema sobre o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará: tornar-se-ia um autor da literatura… paraense. O próprio Herculano Moraes põe em crise aquele conceito ao inserir em seu escopo Mário Faustino (p. 133-138, tomo II). Mas teria o crítico outra saída? Deixaria de fora de sua Visão Histórica da Literatura Piauiense Faustino e os demais escritores que não exploram temas locais nem se valem de vocábulos regionais? Tomaria mesquinhamente como um critério basilar o local de nascimento do autor e, dessa forma, excluiria de seu livro, entre outros, Hardi Filho e Rubervam Du Nascimento?

A aporia em que Moraes se imiscui – de forma alguma um privilégio privado – é sintomática. Quando nos aproximamos da noção de literatura regional – e mesmo de literatura nacional – bordejamos perigosamente essa via. O patriotismo, disse Octavio Paz, não é apenas uma aberração moral – é também uma falácia estética. Quando digo literatura piauiense trago para o campo artístico uma noção geopolítica e histórica. O problema é que é impensável conter um grande autor nas  bordas de uma literatura regional. Mário Faustino tem mais que ver com o inglês Dylan Thomas do que com Da Costa e Silva. Assis Brasil tem mais afinidade com o americano William Faulkner do que com Fontes Ibiapina. H. Dobal se afina mais com o irlandês W. B. Yates do que com Martins Napoleão. O.G. Rego deve mais o seu talento a certa tendência da romancística francesa – Sthendal, Flaubert, Proust – do que a um Abdias Neves. Os exemplos poderiam se multiplicar ad naseum como comprovação de que é redutor ler autores exclusivamente pela pauta da noção de literatura regional. A narrativa das continuidades que as histórias da literatura de diversos Estados forjam estão fadadas à incompletude ao  fracasso, pois o “espaço” literário não coincide com o espaço geográfico. Uma prova cabal disso é o modo radical como Allan Poe mudou os caminhos da poesia francesa.

Não nos enganemos, porém: esse  reducionismo que está no bojo da noção de literatura regional é demasiado evidente para deixar de ser reconhecido. Mas por que, mesmo apesar disso, continua a se falar sobre literatura regional? Eis uma pergunta  complexa a que, neste espaço, só posso dar respostas provisórias.

Três motivos podem servir de resposta à indagação. Primeiramente, a necessidade de produzir zonas de pertencimento, isto é, de forjar identidades. Nesta perspectiva, a literatura piauiense responde à necessidade de se produzir uma identidade cultural piauiense. Em segundo lugar, as literaturas regionais resultam da experiência da margem, e nesta pauta são uma resposta ao sentimento de marginalidade cultural a que certos Estados brasileiros são relegados. Mesmo que se fale em literatura paulista, carioca ou mineira nunca estas noções serão estratégicas como o são literatura piauiense, maranhense ou cearense, pois Minas, Rio e São Paulo não ocupam a margem cultural no que concerne ao discurso literário. Em terceiro lugar, como nos ensina Foucault, quando se cria uma nova área de saber e instituições para abrigar este saber cria-se, também, um campo de poder; assim, a instituicionalização da literatura piauiense, promovida principalmente pela Academia Piauiense de Letras, permitiu (e permite) à elite cultural piauiense (dentro e fora da Academia) ocupar um espaço social privilegiado e influente na sociedade piauiense.

Resulta desta terceira resposta as implicações extraliterárias do conceito de literatura piauiense. Usar este conceito traz implicações políticas porque, a partir dele, se valida as regras de um campo de produção cultural cujo desenvolvimento depende do insulamento cultural (literário) do Estado. A quem, porém, interessa este insulamento?

P

Wanderson Lima é professor e escritor