FERREIRA, Climério. Poesia de quinta. Teresina: Nova Aliança, 2017.
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O DESLIVRO
restam restos de palavras
letras soltas na palidez das páginas
sumários, índices, prefácios aflitos
e uma enorme falta de sentido
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QUESTÃO DE PREFERÊNCIA
não faça discurso
não faça sermão
prefira um novo percurso
e uma velha canção
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Climério Ferreira é poeta e letrista. Nasceu em Angical do Piauí. É professor aposentado da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, onde reside.
. TEU CORPO AO DORMIR MEU CORPO BUSCA Adriano Lobão Aragão
teu corpo ao dormir meu corpo busca
em teu colo se debruça
minha face que teu cheiro aguça
minha face tua face
minha mão que tua mão segura
enquanto dorme
e segura minha mão a mão tua
teu corpo ao dormir me procura
e sobre minha perna tua perna perdura
e sobre tua perna a minha imita a mesma postura
e dura infinito neste sono a minha carne dura
encosta na minha a face tua
encosta em mim por todo sono
o seio o lábio a vulva
e deixa assim junto o sonho
de sempre habitá-la nua
e quando a mim à noite assim se debruça
mais que teu corpo meu sonho busca
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I Marleide Lins
Língua gêmea
onda que se aveluda
invade a fremir a senda
trazendo o que extrai da gruta
sente o sêmen da concavidade fêmea
e serve-se no convexo da fruta
“Eis tua palavra / doce fruto escondido / pronto para o pássaro / ou para secar ao sol”. Nesses versos, extraídos de um poema intitulado justamente de Poesia, Graça Vilhena nos apresenta metaforicamente o caminho que busca trilhar em seu labor artístico-literário. Poeta, contista e professora, Graça destila em seus versos diversas sutilezas escondidas pelo cotidiano, muitas vezes invisíveis ao olhar indiferente da urbe e seus transeuntes, ou do universo privativo dos lares e afazeres domésticos, almejando observar e expor a poesia presente em suas sutilezas. Nesse sentido, relembro o comentário tecido pelo poeta H. Dobal: “Graça faz poesia como quem vive: pessoas comuns, o dia se dissolvendo no bico das chaleiras, o sol nos cajus e mangas-rosas da cidade. Por isso, os seus poemas suportam, com vantagem, o teste da releitura, o que é, sem dúvida, um sinal de grandeza.”
Nascida em Teresina, autora de Em todo canto (poemas, 1997), O jornaleiro de gesso (contos, 2002), Pedra de cantaria (poemas, 2013), Graça Vilhena nos apresenta um painel lírico e tocante de observações da vida imediata, muitas vezes extraindo o lirismo a partir de pessoas em situação de vulnerabilidade social, como nos poemas Menino no cais (“É um menino pequeno / sob o luar; ao relento / como uma flor no sereno.”), Rua da Glória (“mais além / uma mulher permanecia / sem hora de seus dias / dissolvendo-se em transparências / nas escamas do cais”), Poema comum (“A moça do sim entrou no bar / olhou em volta, o coração em flor / enfeitava-lhe os cabelos / cuspiu semente de noite pelos olhos / e preparou a boca ardentemente / para os beijos mudos.”), dentre diversos outros. Na primeira estrofe de O garrafeiro, por exemplo, Graça empreende uma interessante correlação entre o homem e o espaço no qual habita: “o garrafeiro era apenas um homem / que sobrava das ruas / também sujo de terra e esquecido / como as garrafas e cacos no quintal”. Para o professor Luiz Romero, “sua poesia resgata imagens quase perdidas de cenas da vida social, doméstica e citadina: ruas, casas, sapatos, rinhas, carpetes, meninos, cais… É pura poesia do cotidiano que tem em Cesário Verde e Mário Quintana seus grandes e belos gestos poéticos.”
Além dos elementos aqui mencionados, a poesia de Graça Vilhena não se restringe a temas e formas, abrangendo desde o retrato social, a solidão de marginalizados, mas também se volta para o universo lírico-amoroso com a cadência e a desenvoltura que lhe são inerentes e, como acontece aos bons poemas, desperta em seus leitores o desejo de reler seus versos.
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Adriano Lobão Aragão é autor de Destinerário (poemas) e Os intrépidos andarilhos (romance).
Entrevista publicada originalmente na revista Amálgama, número 1, em janeiro de 2002.
Entrevistados por Hermes Coêlho, Adriano Lobão Aragão e Sérgio Batista, numa manhã de sábado, diante de lentas águas do Rio Poti, o poeta Elio Ferreira e a professora Lisete Napoleão ponderaram sobre literatura piauiense, poesia, hip-hop, folclore, bumba-meu-boi e o que mais apareceu na conversa. Elio é professor de literatura na UESPI, pesquisador da cultura e resistência negra no Brasil e no mundo, autor do livro de poemas O Contra-lei, já em sua segunda edição, onde mistura do hip-hop à poesia marginal. Lisete é Pró-Reitora de Ensino na UESPI, professora de literatura piauiense e pesquisadora de nosso folclore. Escreveu os livros Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto, Zamba e Histórias que Ouvi. Entre um gole de água mineral para o Elio e uma cervejinha para Lisete, perdidos no bairro Santa Sofia, sob pés de “segura-ela” e mangas, deu-se o interrogatório.
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Amálgama – Quais as características próprias da literatura piauiense?
Lisete– A característica que a gente vê, que a gente tem, no Piauí, é ter esse amor pelo Piauí. Porque são raros os escritores que deixam de falar. O Da Costa e Silva, sempre que falava, era telúrico mesmo. A marca maior deles, que eu vejo, é que sempre que eles usem temas universais, estão sempre voltados para o Piauí. Ao nosso Piauí ou à sua cidade natal.
Elio – Dentro do grande, do nacional, deve existir identidade. Eu sou do Piauí, mas eu sou do universo, eu sou cidadão do mundo. Então meu sentimento daqui vai partir também para o que eu tenho de universal e de humano, que existe em toda parte.
Lisete – Dentro da autoestima impor respeito e espaço.
Elio – O Piauí não está isolado. Porque o mundo ocidental… muita coisa que se escreve aqui vem do ocidente. Chega aqui e se adapta a uma outra realidade com elementos complementares da arte e da mentalidade de um povo, de um lugar em que está se vivendo.
Lisete – Nós sabemos o quê? Que nós temos toda uma influência de Portugal, que foi de onde nós passamos muito tempo ligados. Portugal, por sua vez, tem toda sua influência de onde? Do resto da Europa, onde o Garrett [Almeida Garrett, poeta e dramaturgo português do romantismo] e todo o pessoal iam e retornavam à Portugal… o próprio Bocage [poeta português, árcade pré-romântico] deixou essa influência para nós, que por nossa vez, à medida em que fomos aprendendo a caminhar, nós fomos absorvendo essas características e compondo nossas músicas, nossas poesias, dentro da nossa realidade.
Elio – Toda literatura dialoga com literaturas anteriores, como na própria vida existe esse elemento. O diálogo com conhecimentos anteriores. Hoje, a negritude não pode ficar descartada numa situação como essa. Portugal veio, mas tem-se de Portugal como se tem do índio, como temos do negro e de outros povos. E o momento da literatura autenticamente brasileira é quando a gente começa a perceber a dominação, a perceber que temos que pensar com a nossa própria cabeça, por nosso próprio mundo. Estabelecer que a realidade de Portugal veio até aqui, mas temos de Portugal como temos também da África, do índio. Então, a gente tem que ver de outra maneira. Ver com os nossos próprios olhos, onde está a questão de identidade. E o que vai marcar a literatura brasileira hoje, a literatura do mundo, é pensar com o olhar do dominado. Então não se pode passar a vida inteira pensando como europeu. Se tem essa estrutura, a gente modifica isso. A gente fala outra coisa…
Lisete[interrompendo] – Ver o que eles têm e construir a nossa realidade.
Elio – É claro. No mundo e na literatura, as culturas dialogam com outras. Deve haver um mundo miscigenado.
Amálgama – A antropofagia na prática?
Elio[gesticulando muito] – A antropofagia da prática. O que é que eu tenho de negro? Eu tenho de negro isso. O que é que eu tenho de índio? Eu tenho de índio isso. O que é que eu tenho de europeu? Eu tenho de europeu isso. Então são as coisas que eu preciso viver nesse momento.
Lisete– O que nós, brasileiros, temos disso…
Elio – Agora eu, como negro, assumo hoje mais o quê? A questão da negritude. Porque essa é minha maior herança.
Lisete – Embora essa face gritante seja do negro, você não pode negar o que tem do índio e do branco.
Elio– Renegar o índio nunca! A minha ancestralidade também está no presente. Eu fiz um estudo da minha ancestralidade e descobri que a minha bisavó foi pega “a dente de cachorro”, que era uma índia. Temos que resgatar esses nossos valores que foram apagados. Temos que resgatar isso para que tudo conviva em pé de igualdade. Essa relação de diálogo e respeito a todas as culturas e a todas as religiões. Isso é o que se busca. Por que falou-se em negritude e na cultura do índio? É para que sejam respeitadas num mesmo nível que o branco. O branco é branco, e é bonito. O negro é negro, e é bonito. O índio é bonito. A cultura do índio é tão importante quanto a cultura do europeu. O que a literatura brasileira faz nos últimos tempos? É buscar uma linguagem aproximada da que o povo fala, quebrar valores também. Não podemos passar o tempo todo discutindo os valores europeus. O que há de Piauí aqui? O que o pessoal do Piauí está escrevendo? A gente deve entender o Piauí, esse conceito, a partir do que se tem escrito. O cordel é uma marca forte no Piauí. E o que marca o Brasil nesse cordel é a oralidade do poema. O poema para ser gritado.
Lisete – Devemos nos arrancar desse marasmo, porque ele é analisado na Sorbonne e no exterior, mas nós conhecemos pouco e trabalhamos pouco o cordel. Até que a nossa Universidade Estadual começou a resgatar e tentar fazer um trabalho junto ao próprio Pedro Mendes Ribeiro, que todos os anos faz um encontro internacional de cordel aqui no Piauí.
Elio – O que precisamos resgatar é a nossa história. Resgatar a memória do Piauí. Essa questão da piauiensidade é importante. Temos que nos identificar para nos assumir como nós somos e conquistar um espaço também fora daqui. Porque o que acontece é isso aqui: nós somos a periferia. Assim como o negro é tido como periferia, assim como o índio é tido como periferia, essas culturas… E o Piauí em relação ao Brasil é periferia…
Lisete[protestando] – Ainda é periferia. Ainda…
Elio – Considera-se periferia. Estamos aqui num isolamento. O Piauí ainda é tido como o estado mais atrasado, mais pobre. Ainda é visto assim. Então voltar a nossa visão para nós mesmos é importante. O amor próprio, e amar aos outros, para começar a conquistar espaço fora. Agora tem-se que fazer alguma coisa aqui.
Lisete– Mas já estamos melhorando, já há um avanço. A preocupação está muito maior.
Elio – Mas tem que ter investimento! Investimento cultural! Pra quem faz literatura é muito pequeno.
Lisete – É pequeno, eu sei. Mas e quando não se tinha nada? E hoje já se tem.
Elio – Mas são pequenos.
Lisete– E quando não se tinha nada?
Elio– Sim. Mas não se está nesse ponto mais. Você vai, por exemplo, ao Ceará ver a quantidade que eles investem em literatura lá. Todo dia tem gente de fora pra falar de literatura lá. O que o Piauí não faz é isso.
Lisete– Mas nós estávamos falando de produção.
Elio– Mas o diálogo pra fora é válido, porque é preciso isso para levar a nossa literatura para outros lugares. Não devemos ficar ilhados aqui. Precisamos nos comunicar com outras literaturas.
Lisete – Nós precisamos conhecer é a nossa casa. Primeiro trabalhar a nossa casa, dentro. A partir desse momento é que nós podemos ir lá pra fora e abrir as nossas fronteiras. Mostrar que nós somos bons também.
Amálgama – Elio, os seus trabalhos sobre Torquato Neto e Mário Faustino foram publicados em jornais. Como você vê o espaço dado a esse tipo de trabalho nos jornais?
Lisete – Os jornais de grande circulação você sabe que têm que ter um retorno financeiro, e esse tipo de matéria não dá.
Elio – Mas o que é que falta para isso? Onde é que está o vazio? Por isso é que o vazio é grande. Naquela época, por exemplo, quando eu fui fazer as performances de poesia de rua, é porque não havia espaço, meu amigo! O poeta se sente sufocado, então precisa de um espaço, porque falta isso num jornal. O que se faz pra publicar hoje? Eles não publicam mais.
Amálgama – O que as agremiações e academias estão fazendo nesse sentido?
Lisete– A Academia de Letras do Vale do Longá tem um espaço no jornal O Dia, onde você tem espaço pra publicar. A UBE também tem um espaço…
Amálgama – Não existe um exagerado elitismo dentro dessas academias?
Elio – Toda academia é elitista.
Lisete– Até porque há limitações no número de cadeiras.
Elio – Essa questão no Brasil hoje é uma questão de amizade. É claro que todo grupo gira em torno de interesses, ou pelo menos de visões parecidas, estéticas e ideológicas, mesmo que surjam divergências dentro do grupo. Mas a academia parece algo mais fechado ainda. Há um padrão, você tem que ser “assim” pra ter uma vaga: “esse aqui não cabe aqui porque foge dos nossos padrões”. Quando é um movimento, há mais abertura. E tem a política no meio ainda, valores morais, econômicos, políticos, que sempre influenciam na academia.
Amálgama – Elio, como foi o episódio no qual você ficou nu durante uma apresentação em Campina Grande?
Elio– Em Campina Grande foi o seguinte…
Lisete[interrompendo, risos]– Não estava no script…
Elio – Não estava. Não havia nada premeditado. Mas é a questão do Contra-lei, né? Era aquela coisa de criar um clima que dissesse da nossa angústia da época. Então a coisa foi acontecendo…
Amálgama – Foi no dia do massacre no Carandiru?
Elio– Foi no dia do massacre no Carandiru! Eu tinha visto na televisão e eu disse: que país é esse? Em que mundo nós estamos vivendo? Eu passei a viver toda a circunstância da poesia. Aquela relação de fazer O Contra-lei e você incorporava não apenas o poema como um indivíduo que a poesia te fazia aquilo.
Lisete– Tu fizestes isso em sã consciência? Não tinha tomado nada?
Elio – Não, não… Isso aí é à parte… [risos]
Lisete – É muita coragem… [risos]
Elio– Mas quando você pinta a cara, você não é mais você. Parece que baixa um fogo assim, em cima de você. Dos seus ancestrais, sabe? Quando o poeta fala, ele fala por muitas vozes, não é só por ele não. É muita gente falando através dele.
Amálgama – Mas lá na hora, como foi?
Elio – Na hora, foi o seguinte, eu disse: “que país é esse onde acontece esse tipo de coisa?” E eu comecei a declamar: “eu não sou o presidente, eu não sou o governador…” aí começaram a aparecer as imagens do Brasil, um bocado de sacanagem, de miséria, de violência…
Lisete – Mas essa alucinação era real?
Elio– Era o que eu estava falando na poesia. Era uma coisa real. E eu me perguntava: “que país é esse?” Aí desci as calças e peguei no saco e mostrei pro pessoal. “Que país escroto é esse?” Aí as meninas gritavam: “professor!!!” e botavam a mão no rosto, assim, mas ficavam vendo tudo com os olhos entre os dedos… [risos] Mas não é que você faça a coisa pra chocar. É uma coisa que acontece… A coisa foi crescendo…
Lisete– O meu questionamento é esse.
Amálgama – O que a Lisete quer saber é se você estava drogado.
Elio – Em primeiro lugar, quando eu vou para as minhas performances, eu não bebo.
Lisete – Mas, Elio, veja bem. Era um público enorme. Qual era o público?
Elio – Tinha umas cinco mil pessoas, não tinha não? Tinha não. Era o Encontro Nacional de Letras…
Amálgama – O ENEL de 1992, em Campina Grande.
Elio – Em São Paulo, na USP, também aconteceu outro lance assim, parecido. O que agredia não era só tirar a roupa. Era também o texto. Na Paraíba, quando eu ia pra praça, o pessoal começava a gritar: “eu vou comer a tua mãe, eu vou comer o teu pai…” [cantando, trecho do poema Canibal, do livro O Contra-lei]
Amálgama – Então a poesia embriaga?
Elio – Embriaga. A poesia te envolve. Porque a poesia do contra-lei não é só o texto poético. Há a incorporação de um personagem. Viver a poesia na dimensão em que escrevo.
Lisete– Mas lá [em Campina Grande] estava o professor Elio…
Elio[interrompendo]– Não! Professor não! Professor é na sala de aula. Eu sou o poeta!
Lisete– Mas você estava representando a universidade…
Elio[interrompendo]– Não! Eu sou o poeta. O Elio é o professor lá na sala de aula. Se eu saí de lá, eu sou mais eu, eu tô rua, eu sou outra entidade.
Lisete – Se você estivesse representando a universidade, deveria ter tido a postura de professor.
Elio– Mas eu sou é o poeta. A entidade é outra coisa. O cara é administrador de empresas, ou é empresário, mas faz uma peça de teatro. Lá no palco, ele é o ator ou é o empresário? Eu tô em casa, eu estou com minha família, eu sou um pai de família. Mas se eu tô na rua falando poesia eu sou o poeta. Eu não sou mais pai de família.
Lisete– Mas se eu for a um seminário representando a Universidade Estadual do Piauí, ali eu sou a representante da universidade, eu sou a professora Lisete.
Elio – Enquanto estiver em sala de aula!
Lisete– Não. Enquanto eu estiver ali, inclusive sendo financiada com passagem paga, com estada paga pela universidade.
Elio – Mas o dinheiro não é da universidade, o dinheiro é do povo, é do Brasil…
Lisete– Mas se eu for para um teatro…
Elio[interrompendo]– Mas o meu trabalho como professor é na sala de aula.
Lisete– Você estava nu na conferência como professor ou como escritor?
Elio – Eu estava como professor e como convidado, poeta, a falar poesia! Eu estava na pauta como poeta, pra falar poesia. Eu não tirei a roupa na sala de aula. Eu tirei num espaço propício pra fazer arte!
Amálgama – A agressividade de sua poesia nasce de alguma frustração social?
Elio– O que eu falo não sou eu que falo. Talvez o que as pessoas gostariam de dizer, ou o que as pessoas dizem. Para os meus poemas, eu tiro muito o que as pessoas dizem na rua. Eu sou negro, venho de uma classe social pobre, no nordeste, no Piauí, Floriano. O que você escreve é tua vida. Machado de Assis dizia que o menino é pai do homem. Eu convivi em oficina de ferreiro. Minha família era toda Ferreira, meus tios, minha mãe era flandeira, meu pai ferreiro, e eu cresci naquele som do metal e do palavrão, que quando você tá puto com alguma coisa você xinga. Então procurei alguma coisa que dissesse da angústia e do sofrimento do povo, da realidade que eu vivia. Uma maneira mais forte de tocar as pessoas.
Amálgama – E como está sua poesia hoje?
Elio – Minha poesia hoje não está mais dentro daquele tom. É um momento que você cria uma espécie de ser que você incorpora. Você escreveu aquela fase, você esgotou aquilo ali. É uma coisa de momento.
Lisete– Eu acho que houve um amadurecimento. Acho o Elio mais maduro, mais consciente.
Elio– Eu preciso dizer de uma maneira que marque o meu tempo. Uma coisa que veja o mundo com a linguagem das pessoas da minha época. Do meio em que eu convivo. Eu vivo num momento difícil em que as pessoas estão buscando se situar no mundo, num lugar ao sol, e o mundo tem que ser pra todo mundo. Por que essa grande visão na miséria total, sem acesso a escola para uns, e outros com tanto? Então o contra-lei era isso. Porque a lei estava muito errada! [bem enfático] E ainda está muito errada. E eu vivi numa estrutura que eu conhecia muito tudo isso. Eu trabalhei em repartição pública, eu nunca fui só professor, porque não dava pra comprar meus livros. Eu fui educado numa família em que meu pai era ferreiro, mas se comprava livro e tinha biblioteca em casa. Minha mãe ensinava a ler, também era professora, por isso lá em casa era cheio de gente. O “poemartelos” fala disso, e é muito de memória, porque eu pegava também muito o mito do povo. Houve um crime muito hediondo na minha cidade. O cara matou outro e pinicou todinho. O que eu sei dessa história é que aparecia o demônio na casa dessas pessoas e o cara que fez esse crime era casado com uma tia minha, e sofreu muito por isso. No “poemartelos” eu falo dessa coisa. Muito som, muito martelo. Imitar o som do ferro. Eu criei uma poesia sonora pra ser falada imitando o som do ferro.
Lisete – Hoje você usa muito o estilo do Rap, não é?
Elio – O Rap foi um momento do Contra-lei. Quando eu escrevi O Contra-lei, não tinha nenhum contato com o Rap. Comecei a ter no final de 94. Aí o pessoal do Rap, do Hip-Hop, viu meu livro e dizia: “Professor, vamos cantar isso aí ”.
Amálgama – Então, na verdade, a inclusão do Hip-Hop ao Contra-lei foi posterior ao livro?
Elio – Foi posterior. Depois eu publiquei a segunda edição já com esse contexto. Mas eu acho que já tinha alguma coisa de Rap no ouvido, por causa da poesia pra ser falada, porque quando você escreve, além das coisas do passado, tudo que há de presente no som você coloca no seu texto. Eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira. Era sempre assim, ouvindo vários tipos de música.
Amálgama – Mas foi o Rap que incorporou isso de maneira bem característica para sua poesia.
Elio– Exato.
Amálgama – Então como você vê a essa situação de respeitar uma MPB que torce o nariz para o Rap?
Elio – Eu não sei por quê. Pois o Hip-Hop é um ritmo, um ritmo negro, dos negros que viviam nos guetos dos Estados Unidos, na periferia, e Rap quer dizer o quê? Poema em ritmo. Poema pra ser cantado.
Lisete – Mas eu acho que há essa marginalização porque eles levam geralmente à anarquia, à droga, à…
Elio– O Rap não tem nada disso! O Rap é o contrário. O Hip-Hop…
Lisete – Mas as gangues e as confusões que tem no Rio de Janeiro…
Elio – Aquilo é outra história.
Lisete – Mas há uma mistura, pois inclusive é muito parecido.
Elio – Junta-se o Rap ao Hip-Hop. O Hip-Hop é um movimento educativo. É a visão de educar. “Faça a Coisa Certa“, lembra do [filme de] Spike Lee? Está diretamente ligado a isso, a educar. Tirar o sujeito da pior. Mas é claro que existe o Rap gangster, também. Não vou dizer que só há bons. Mas a força toda do Hip-Hop é tirar o cara da lama.
Lisete– Mas o próprio Hip-Hop tem também as gangues.
Elio – Não. Não tem não. O Hip-Hop é o seguinte: são pessoas educadas, gente da periferia, meninos que estudaram a história do negro, a condição de…
Lisete– Inclusive o Gabriel O Pensador faz isso…
Elio – Mas o Gabriel O Pensador não é do Hip-Hop. Ele faz Rap, mas não é do Hip-Hop, do movimento. Hip-Hop é um movimento que, em primeiro lugar, é música para divertir, para conscientizar, para educar, para contar a sua história, do momento, da periferia. Os Racionais mostram o cara quando entra no tráfico, mas também quando se dá mal no final. É instrutivo. É a consciência ideológica. Estudar a questão do negro, a questão social da miséria. Evitar entrar no mundo do álcool, da droga, porque aquilo vai te levar para um caminho que pode ser sem volta. Mas o Rap também pode se aproximar pra dialogar com as gangues, porque a gangue é apenas um fator social.
Amálgama – Não seria então a música que leva à criminalidade, ela só reflete…
Elio– Reflete a realidade. A condição de ser. Por que o sujeito está no crime? Porque não teve oportunidade, na periferia, para ele. É algo altamente político, algo revolucionário. É pra brincar, educar e pensar sempre. É a mesma situação o negro e o pobre. A visão é essa. Mas não se abre espaço na grande mídia para o Hip-Hop. Não se abre para Racionais, para Câmbio Negro, para Rio Radical Rap, que tem até um cara do [bairro de Teresina] Monte Castelo, que eu sempre converso com ele, o Yuri, no Rio de Janeiro. A polícia de Minas Gerais deu o maior cacete e quase mataram o cara, deixaram o cara jogado lá porque tinha um verso dele que dizia “Foda-se a polícia, foda-se a polícia”.
Amálgama – Lisete, e como anda a pesquisa folclórica?
Lisete– É um trabalho que estamos desenvolvendo desde um curso em Belo Horizonte, que foi Leitura e Produção de Texto. Naquela época eu viajava muito pelo interior, trabalhando pela UESPI.
Elio – Eu acredito que nossa base, nossa cultura está sempre no interior…
Lisete– E eu tenho difundido isso pra fora. Eu recebi agora em Lisboa um cavaquinho, que é um prêmio cultural de lá pelos trabalhos que faço. Eu confesso que além de ser uma defensora e uma pessoa que trabalha com a literatura piauiense, eu sou uma das pessoas que dá a vida e o sangue, qualquer coisa, para que a gente continue trabalhando a cultura de um modo geral. Eu não me preocupo se ela está elitizada ou não. Eu só me preocupo se ela chega ao povo. Que o povo, com isso, consiga fazer uma análise crítica. A nossa cultura é riquíssima e apaixonante. O meu trabalho me ajuda a descobrir isso cada vez mais.
Se eu começar este comentário citando o seguinte trecho de Os intrépidos andarilhos e outras margens[1], “… seria então possível desvendar sua origem, o ponto do qual deságua toda a narrativa, que não é mais que o interminável poema de uma mesma fabulação? Recompor o grande, imenso poema que registra o itinerário de tudo, ou pelo menos o breve fragmento que preserva os intrépidos andarilhos, motivo de sua jornada por campos tão longe de casa?”, o meu leitor mais experiente e safo poderá abanar a cabeça e dizer com seus botões, ai meu Deus!, mais outra narrativa de metalinguagem, de fabulação narrativa voltada para a própria práxis da fabulação narrativa (e suas conexões intertextuais) como tema, ai, não aguento mais!
E se eu acrescentasse outra citação, “…com os mais diversos exemplos de histórias e temas, como um entrelaçar de dias e noites que não revelava seu fim. Mas agora tinha diante de si o enredar de fios que talvez tecesse o paradeiro do objeto de sua busca (…) à espera de quem chegasse para ouvir de-que-se-trata em cada livreto, e seguia um a um desvendando se estaria ali enredada a história que procurava, se entre todos aqueles breves e inúmeros volumes encontraria os andarilhos…”, talvez venha à mesma cabeça abanada desse leitor aquele trecho paradigmático do conto de abertura (“Os desastres de Sofia”) de uma coletânea que em 2014 chega, vejam só, aos 50 anos (A legião estrangeira): “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias…”; Clarice Lispector, há meio-século, parecia já esgotar o assunto.
Mas não esgotou. E o lindo romance de Adriano Lobão Aragão está aí para desafiar os arautos e augúrios do esgotamento. Sim, ele trilha os caminhos da metalinguagem e da intertextualidade[2], e as peripécias do seu herói (o caminhante) deságuam no mundo de histórias contadas em verso e prosa no mundo de cantadores e cordelistas; ao fim e ao cabo da sua perambulação temos um livro que tanto era sua bagagem inicial quanto foi objeto de busca, e dentro do qual ele, seu leitor (que se formou, arduamente, como leitor, vindo do analfabetismo total), está contido como personagem, naquela coisa circular da cobra-mordendo-o-próprio-rabo. E não afirmarei que, nesse ponto, encontramos exatamente o encanto peculiar de Os intrépidos andarilhos e outras margens (infelizmente, esse título não foi dos mais felizes[3]), ainda que possa afirmar que o autor piauiense seja um dos que se saíram melhor, na ficção contemporânea, ao enveredar por essas espinhosas e traiçoeiras sendas.
Antes de tentar, todavia, definir tal “peculiar encanto” e esclarecer por que achei tão lindo o texto, seria bom fazer um percurso (sumário) pelos mil e um percursos da narrativa, a qual, seguindo a mais pura matriz homérica, mostra um protagonista que erra pelo mundo.
II
O território delineado em Os intrépidos andarilhos e outras margens é um sertão simbólico (eu quase que diria conceitual, se esse termo não fosse tão escorregadio; então usemos: poético), mas que se apresenta muito verossímil. Até os detalhes mais “fantásticos” (outro termo escorregadio) são apresentados de uma forma que me lembra García Márquez ou Juan Rulfo: há um deslocamento das leis físicas, sem que tal “liberdade poética”, por assim dizer, afete o substancial prosaísmo do real.
Instigado pela passagem dos “andarilhos intrépidos”, “caravana mambembe que perambulava ininterruptamente, mas não se sabe desde quando”, o rapaz de 20 anos deixa sua isolada terra natal. São percursos dolorosos, marcados pela quase-morte e uma ressurreição (“à beira da morte, que à beira da morte sempre esteve”).
A primeira passagem de relevo é por uma região arcaica e erma, esquecida do mundo (como a dele próprio) e orientada por uma férrea tradição pré-cristã, nem por isso deixando de contar com seus próprios totens e tabus. Uma história exemplar demonstra isso de forma inequívoca: o forasteiro que fora bem recebido pelos nativos, comera e bebera, contara maravilhas e lorotas de lugares distantes, e que por roubar uma cabra à sua partida, era morto e desmembrado por todos: “…todos queriam fazer valer a lei dos antigos, que era essa ainda a sua lei e o que poderiam nomear justiça (…) Onde tantas mãos se erguem bradando a necessária justiça, que nenhum nomearia vendeta, e a todos abarca o ofício de testemunha, acusador, juiz e carrasco, e que o culpado seja executado junto a seus defensores, se estes houvessem, claro, estes mesmos que não há…”
Nesse povoado há uma moça que vaga à noite (sonâmbula) até que um dia é violentada pelo filho do magarefe local. O avô mata o abusador (seguindo a Lei), mas a partir daí ela se sente vigiada pelo pai dele. Já não mais vaga inconsciente pela noite, e sim bem desperta. E em locais a que ninguém vai, quase interditos, ela descobre o caminhante, o rapaz que saíra de casa por conta dos “intrépidos andarilhos”, e que praticamente morreu de exaustão e escassez (uma de suas muitas mortes na narrativa). Como num conto-de-fadas, é o beijo da moça que o faz reviver, que o traz de volta ao seu corpo, num momento aliás de grande voltagem poética:
“E ela o beijou. Ela o beijou como as primeiras gotas de chuva chegam a tocar as pétalas das flores de seu perfumado campo (…) E ela o beijou como o odor da terra úmida se mistura ao odor do mato após a chuva e ofusca o perfume das flores (…) E ela o beijou como diversas vezes juntou várias flores e pétala a pétala as desmanchava em seu corpo e fingia a si mesma estar adormecida, esperando que acreditasse em sua própria ilusão (…) E ela o beijou profundamente, e entregue ao fascínio daquele instante, o caminhante não pôde mais continuar distante de seu corpo, entregue aos enleios de uma moça que lhe devolvia sua própria vida.”
A meu ver, no entrelaçamento da trajetória do caminhante e da sua salvadora é que está o ponto alto dos 61 capítulos do romance. Apesar dos ricos veios explorados mais adiante, nada se iguala em beleza, concentração e apreensão de um mundo rústico, parado, atávico, e no entanto fremente, no qual por mais que se evoque uma tradição (violenta, por sinal) e interditos, todos os gestos parecem recém-inaugurados. Adriano Lobão Aragão parecia particularmente inspirado ao escrevê-los.
Tanto que quando o caminhante dali se afasta sentimos pelo resto do romance saudade da moça que lia os seres e as paisagens no céu, como se este fosse um espelho do mundo (haverá outra mulher, porém sem a sua força). E que se encaixa na macro-narrativa ao ser ao mesmo tempo uma individualidade e uma estória em estado virtual, nesse universo que exige exemplaridades (no sentido de histórias exemplares, que alertam e reprimem): “Transformava-se assim em mais um enredo para a história de uma jovem que caminhava dormindo pelas trevas, pronunciando palavras terríveis, enquanto era seguida por um avô ensandecido, como um personagem acrescido a uma fábula inconclusa”; ou ainda: “… até ser esquecida por todos e transformar-se de vez em apenas mais uma das histórias que mantêm firmes as tradições morais de seu povo.”
O próximo estágio civilizatório já é cristão, embora um mundo cristão agônico, pejado de superstição e violência, e onde o caminhante encontrará duas novas figuras iniciáticas: o padre local, que está ali como uma espécie de esteio contra a barbárie, e que se apresenta muito menos fanático do que os seus fiéis[4], e um membro desgarrado da trupe dos “intrépidos andarilhos”, o ilusionista, que abdicou do destino mambembe por conta de um amor.
Ao contrário do mundo iletrado e telúrico da moça que o beijara (e o salvara), aqui temos o mundo regido, teoricamente, pela Palavra, e palavra escrita, embora poucos tenham o aprendizado da leitura. Nota-se, porém, correndo sob a tensão dessa Palavra, um mesmo rio de brutalidade latente ou explícita (daí a terrível solidão do padre e também a ambiguidade do talento lúdico do ilusionista, que sempre pode ser tomado como demonismo, como um avatar da “mão esquerda”, a sinistra, a malsinada),[5] baseada no famigerado costume.
Como figura típica de história iniciática, o padre diz ao caminhante (quando supõe que ele já está de partida): “A pergunta, a verdadeira pergunta, seria: o que sabes sobre si mesmo? Procuras respostas sobre essa tua jornada, caminhas por estas ruas para descobrir quem é aquele homem, mas nunca paraste para perguntar nada a si mesmo. O que esperas saber dos outros?” E é ele quem dá as “pistas” para o prosseguimento da jornada: um caminho que segue o leito seco de um rio (tendo em mente que se palmilha o dorso de uma baleia, como em certos mitos e estórias romanescas havia o dorso do dragão), e do qual ele não deve se afastar para poder encontrar a fugidia trupe intrépida.
Antes de passar para a próxima etapa, não me furto a citar um dos trechos mais bonitos do romance: “Guiara o caminhante até aqui apenas os seus instintos, sem nenhuma outra indicação. Não poderia ter receio algum em continuar, até que seja inevitável que encontre o seu destino. Sabendo que o destino de todo vivente é sempre a morte? Justamente por isso, não haveria motivo algum para temer seguir adiante.”[6]
Há um interregno que evoca justamente as jornadas iniciáticas: o leito por onde se caminha, “vereda de águas ausentes”, o sono de exaustão, as cascavéis, os sete dias de “esmorecimento”, sendo tratado por um casal misterioso, que fornece a próxima “pista” (o que os cantadores cantam, como repositório de sabedoria)[7].
Após o território do arcaico e do território da sanção cristã, o caminhante se embrenha por uma espécie de mundo-feira, labiríntico mundo onde a cultura popular e mundana (“…detinha-se agora no mergulho dos intrincados caminhos da memória dispersa de um povo…”) é destilada nos livrinhos de cordel, nas histórias mirabolantes que se imbricam com as lorotas dos vendedores de mazelas e de remédios, das malas onde pode sair uma cobra (da qual foram retirados elixires)[8].
Ao se tornar ajudante e acólito de um vendedor desses folhetos de histórias, ao tentar penetrar no seu âmago (e, por isso, aprender a ler), e assim conseguir a pista final para configurar sua jornada em demanda dos “intrépidos andarilhos” e seu paradeiro, o caminhante (e a narrativa) penetra num estágio que poderíamos chamar de “borgiano”. Malgrado haja ainda muitas peripécias (o caminhante servirá como tropeiro por muitas estradas, por exemplo), a respeito das quais não convém entrar em maiores detalhes, tudo vai se armando para equacionar esse leitor em formação, o Livro (além dos livros) e espelhá-los, sendo ele o que o livro que está lendo contém.
Nesse sentido, um dos momentos mais importantes (e verdadeiramente borgianos) é quando se evoca a vida do patrão do caminhante, e descobrimos que ela pode ser uma das vidas virtuais do jovem caminhante (“E se agora reaparecia restituído à juventude, outra vida era preciso viver, e novamente jogar-se ao interminável caminho, o mesmo”). O outro é o mesmo (e, assim, elementos anteriores da narrativa vão sendo recolhidos e transmudados, como a história do justiçamento do forasteiro, que toma outro vulto na boca do tropeiro-contador).
E aqui eu mesmo posso fazer a cobra morder o rabo, remontando ao começo deste meu comentário: “… seria então possível desvendar sua origem, o ponto do qual deságua toda a narrativa, que não é mais que o interminável poema de uma mesma fabulação? Recompor o grande, imenso poema que registra o itinerário de tudo, ou pelo menos o breve fragmento que preserva os intrépidos andarilhos, motivo de sua jornada por campos tão longe de casa?”.
III
Espero que aquele que me seguiu até este ponto tenha se dado conta (não fora por mais nada, pela insistência nas citações) do trabalho de linguagem que faz o deleite do leitor de Os intrépidos andarilhos e outras margens. Esse sertão que parece saído fresquinho do antigo testamento (quando Javé ainda era um deus primitivo, pouco tomístico), manhã recém-inaugurada do mundo, e seus contrapontos de feira e ruído, de palimpsestos de textos e referências (rios heraclitianos, vendedores de folhetins e tropeiros borgianos), só são críveis e só fascinam porque há um senhor poeta mapeando os percursos.
Ah, o perigo: fala-se em poeta, e imaginamos uma “prosa poética”, a narrativa apenas pretexto para um lirismo mal contido. Nada disso! Poeta, e dos bons[9], Adriano Lobão Aragão também é um ficcionista, só que daqueles que plasmam uma linguagem peculiar para a sua ficção (que, no entanto, tem um impulso épico, mesmo que com suas “fábulas inconclusas”).
Li em algum lugar que ele levou cinco anos para estruturar a forma final do romance e que, por isso mesmo, ela se ressente de conter em si vários estágios diferentes. Há, de fato, alguns pontos frouxos na tessitura geral, mas, insisto, na impressionante coesão alcançada, o ponto de tensão é mantido na maior parte das páginas. Se destaquei em especial a parte arcaica é talvez porque, localizada no início, ela já nos deslumbra de saída, o restante, portanto, pegando-nos prevenidos e já afeiçoados aos meios e recursos do escritor.
O que ele criou foi uma narrativa-fluxo incessante, que tem uma dicção muito ampla, correndo o risco de esfacelar-se. Para evitar isso, seu talento de estrategista poético encontrou a solução perfeita: pequenos capítulos concentrados e plásticos, verdadeiramente rapsódicos. Sem falar nas pequenas joias lapidares, ocultas no “enredar de fios”; “…continuou falando silêncios…”; “…porque aquela manhã foram muitas manhãs…”; “…o empoeirado chão lhe abrigou sereno, com seus modos amenos de abrigar tanto a semente quanto o cadáver…”; “…como o tempo que depois de desfalecer precisa o corpo reencontrar para o seu estar…”; “perfume é coisa rara em terra em que bala se alastra…”
Agora só me resta convidar o leitor a tentar decifrar (e torná-lo mais conhecido, porque ele o merece) esse “livro escrito em osso, pecado e purgatório”. Osso, pecado, purgatório, signos de paisagens físicas e morais calcinadas e agônicas.
[2] Entre outros, o leitor identificará referências, veladas ou mais óbvias, a Guimarães Rosa, a João Cabral de Melo Neto, a José Saramago, a Borges, a Graciliano, a García Márquez. E mais Milton, Sheherazade, Homero e tantos outros, como se pode verificar no longo trecho abaixo: “Conta o cantador de versos que ao fim da praça com diversos livretos à venda, e que muitos dos versos que agora proclama aprendeu ali, como a história de um príncipe que voava com uma ave misteriosa, e de outro que matava suas esposas todas as manhãs, e de uma princesa que, raptada, enganava seu raptor com todos os homens que encontrava, e de uma outra princesa que contava histórias que não acabavam nunca, e de um poeta cego que escrevia um livro enorme sobre o céu e o inferno com a ajuda das filhas, e de um outro poeta cego que escrevia livros e mais livros com a ajuda do tempo e da eternidade, como se estivesse perdido no labirinto da imensa biblioteca da torre que deveria ligar o mundo dos homens aos céus, e de ainda outro poeta cego que mendigava e cantava a ira de um guerreiro temido que se afasta das batalhas e depois, para vingar o amigo, retorna a matar e morrer na mesma intensidade, e bem pareceria até que todos os poetas fossem cegos, mas havia ainda as aventuras de homens vestidos em metal, montados em cavalos, enfrentando dragões, vilões e bruxos que se organizavam rumo a uma terra distante que buscavam recuperar e por ela morreriam, e de jovens apaixonados que preferiam morrer a não vivenciar seus amores, e outras muitas outras histórias de toda feição e feitio que a voz de um cantador pudesse pôr em verso e enredo…”
[3] Ele é insatisfatório porque não dá conta do essencial da história, e também não combina com a gravidade da linguagem (mesmo com seus elementos picarescos e paródicos, decerto). É certo que os tais “intrépidos andarilhos” são uma espécie de elemento desassossegante no imobilismo sertanejo, e fazem com que o protagonista queira abandonar seu lugarejo, e é certo que eles são inúmeras vezes citados, entretanto não creio que funcionem para o título, o que é piorado pelo “outras margens”, vago e insosso.
[4] Conheceremos sua história pregressa.
[5] Devo dizer que li o romance duas vezes e ainda considero os capítulos referentes ao ilusionista bem menos convincentes do que os do padre.
[6] E como confirmação do que coloquei nos parágrafos anteriores, a próxima frase: “Mas ainda existe muita selvageria habitando este mundo”.
A esta passagem podemos ligar outra, mais próxima do final: “… a sua única coragem talvez fosse apenas a estranha necessidade de continuar, como um rio que não sabe onde ou quando irá desaguar, ou se irá algum dia desaguar.”
[7] Há um travejamento meio à Guimarães Rosa/ Manoel de Barros na linguagem: “De tanto repetir, a gente aprende ou esquece, que é sempre a mesma coisa”. No entanto, há momentos que considero menos felizes, rebarbativos, por exemplo; “O que canta a musa antiga já acabou. Agora é só se alevantar e pegar rumo. No pé adiante é que se vai. Se é tua a parte feita, o por fazer é o por fazer. E quando se lascar todo, tá chegado então. Não tem graça nem simpatia, nem arte nem engenho. O único mistério é não ter mistério nenhum.” Felizmente, a tessitura narrativo-poética que Adriano Lobão Aragão imprime ao seu livro sustenta até essas quedas retóricas.
Mas a parte mais fraca do romance, felizmente poucas páginas, e por isso nem a incluo na minha síntese acima é a do barqueiro que nunca sai do rio e não pesca nada, apenas existe ali indefinidamente (meio A terceira margem do rio), uma não-existência consentida. Há todo um trabalho de paródia (no sentido de apropriação a sério das leituras do autor) admirável em Os intrépidos andarilhos; nesse entrecho, porém, fica-se mais próximo do pastiche.
[8] “(…) inúmeros versejadores, inúmeros declamadores, inúmeros vendedores de alívio para tudo, em formas mil, seja em pomada, em garrafa, em raiz ou raspa de pau, e sempre acompanhado de inúmeras histórias que entretinham o povo ante a ânsia de uma mala prestes a ser aberta, tendo, diziam, uma cobra por conteúdo, e do veneno da cobra extraía-se muitos produtos ora anunciados, e na fala o espetáculo da paciência animada e novos resquícios do interminável poema. E repetiu esse escutar diversos vezes, atento a todos os detalhes e variações, pois diante de uma nova fonte, a esperança de realinhar a voz da história pulsava forte em suas veias, mas, após inúmeras audiências, era evidente que todas as narrações de todos aqueles famigerados divulgadores dos milagres da ciência e das misturas eram sempre as mesmas e, inevitavelmente, a mala com a cobra, origem de todos os lenitivos que anunciavam, jamais seria aberta, como caixa de alívio e de males que herdaríamos do princípio da narrativa.”
[9] Exemplos de boa fatura poética do autor de Os intrépidos andarilhos:
dois rios (de as cinzas as palavras)
há em minha terra dois rios
silenciosos
um
estendido em verde tapete de aguapé
onde não mais trafegam canoas
apenas diminutas criaturas buscando seu pasto
outro
árido tapete árabe
onde todos caminham acima de sua face
então (de as cinzas as palavras)
em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda
somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa
quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata
somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce
Emendatio (de “A Coluna de São Simeão”)
corrigir um ato
refazer a coluna
reanotar cada indicação do caminho
onde não há horizonte
restam nuvens por solução
reelaborar o caminho
para continuar o mesmo
toda obra de um homem
se refaz no tempo
como tudo que é sólido
se desmancha no sangue
um homem busca corrigir seu tempo
que sozinho se esvai
não saber teu nome liberta (de “Yone de Safo”)
não saber teu nome liberta
a tarefa de nomear-te
não mais um substantivo, mesmo próprio
mas a ordem absoluta do caos
então chamo-te poesia
quando recolhes o mais tênue lirismo
na dimensão infinita de um sorriso
e quando passas breve e leve
entre silêncios justapostos
teu nome é brisa
e rompendo o silêncio te chamo lira
nomeio teu ser presságio
onde outros chamariam acaso
e não por acaso, em tua aparição repentina
juntar queria a teu nome todas as sensações
na mais profunda sinestesia
e se acaso perguntasse
que reposta me daria?
que adianta um nome
se nada mais estaria
nesse nome sua dona
que nunca mais veria?
então juntaria teu nome
a todos os nomes da vida
e em cada coisa querida
ali teu nome estaria
quando desejar não é ter
mas querer mais além ainda
mesmo apenas guardar um nome
entre as lacunas da vida
p
Alfredo Monte (1964-2018), doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, por muitos anos, manteve o blog Monte de Leituras (https://armonte.wordpress.com), dedicado à crítica literária.
Saturado do tempo
E da divindade,
Alado, sagrado,
Fora de mim;
A dor e o medo
meu, e dos outros,
extático a sondar,
Acordei, mil olhos,
Lançado no limbo
Dos vates. Torpe
Inspiração divina
Assanhou-me o estro
E acordou-me o ícone
De um cérbero bondoso
De três faces sofridas:
Maria de Manaus1, devota
que perdeu três filhos;
Jair Pecus, o que adora
O deus guerreiro hebraico;
Sr Torres, cético paladino
engaiolado em Teresina.
Com estes compus o tom
Desta tosca palinódia
Onde lavro o meu canto
– Chuviscado de bíblias,
Eivado de bricolagem –
A buscar a luz que esplende
Do vírus à face do humano.
_________________
NESTA GAIOLA MODERNA
Nesta gaiola moderna
– Cativante cativeiro –
Os dias das horas se perderam
Num tango de desencontros.
Um boa noite pode escapar
No papocar do sol. No breu
sem brisa de Teresina,
Importa pouco a cor da tinta
Que esboça a aquarela
A que chamamos Real.
Tanto pôde o vírus
Que já não bastasse o medo
Trolou nossos relógios
Com o pincel da anarquia.
Em 80m quadrados
De sete mirrados cômodos
Três diferentes seres
Emulam os brancos ratos
Cobaia da pesquisa.
O dia rasteja enquanto
O trio de tolos estoca
A comida no bucho
o sono nos olhos, o medo
e o suor no corpo.
Livre de verdade
Só as memórias
De um tempo de errâncias
Sem a vigília do vírus.
P
Wanderson Lima (Valença-PI, 1975) é professor universitário e escritor. Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, integra o Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Em 2018 publicou pela editora Horizonte a obra Travessuras de um menino mau e outros ensaios sobre animação; no ano seguinte, pela mesma casa editorial, publicou Ensaios sobre literatura e cinema. Por dez anos, foi editor da revista Desenredos, da qual é membro-fundador.
PACHECO, Álvaro. A geometria dos ventos. Rio de Janeiro: Record, 1992.
_____________
ÁGUA-FORTE
Um ideograma chinês
de conotação erótica:
um verso de Pound
transcrito em Mandarim
tatuado
entre as coxas mais brancas
como um aforisma de Confúcio, sem
qualquer razão, como
os nomes das mulheres,
Jaqueline, Eveline, Sein, Andrea –
é necessário um condom
para o ideograma, ou uma frase solta
no alfabeto celta –
enquanto isso
se suicidam adolescentes e um velho
de oitenta anos
assassina em Paris seus descendentes
para não deixar herança:
o ideograma permanece
tatuado em azul
entre as coxas mais brancas
como uma ave
(ou um aviso)
Rio, janeiro de 86
_____________
MITOLOGIA
De poucas coisas a vida:
pequenos desejos: ver
uma grande árvore florindo,
alimentar uma criança,
abrigar-se da chuva,
dizer simplesmente bonjour
e contemplar no crepúsculo
os barcos dos pescadores convergindo,
como numa valsa,
mansamente para o lugar dos peixes.
Talvez não ser de nada possuinte,
apenas locatário provisório
de um riozinho de águas perenes
que corra entre árvores e gravetos
como uma estrada perdida
ou da montanha
à distância
coberta de neve e narcisos
ou de uma relíquia preciosa
que jamais fez nenhum milagre
como uma criança
e toda sua mitologia
de poucas coisas e simples desejos.
Rio, abril 91
p
Álvaro Pacheco nasceu no Piauí, fez os seus primeiros estudos em Teresina e veio para o Rio de Janeiro em 1950, onde fixou residência. Fundou a Editora Artenova Ltda., em 1962. Estreou em livro em 1958 com Os instantes e os gestos, seguindo-se Pasto da solidão (1965), Margem rio mundo (1966), O sonho dos cavalos selvagens (1967), A força humana (1970), A matéria do sonho (1971), Tempo integral (1973), Homem de pedra (1975), Itinerários (1984) e A balada do nadador do infinito (1984).
SOUSA, Diego Mendes. Agulha de coser o espanto. Teresina: Área de Criação, 2023.
.
CERTEZA
Poesia
é o pássaro
afogado
no mar
o peixe alado
sobre a terra
firme
a luz fugidia
na manhã
o diáfano
no deserto
o rosto
sem tempo
a matéria
sangrenta
o vento
estático
da vida
e o segredo
Poesia
é a fé
e a febre
a dor e o amor
o olhar
no silêncio
e o degredo
a mudez do grito
a vela do incêndio
a ausência
do destino
Poesia
é o pensamento
é o sentimento
é o deslumbramento
desse canto
amargo
Antes de tudo
e depois do nada
o fim do começo
e o início do fim
Poesia
é a mãe
do mistério
e a solidão
da sombra
(a casa
íntima
da alma)
Poesia
é a agulha
de coser
o espanto
a vaga lírica
a tristeza da alegria
magra
o encanto
.
A CASA
A casa desabriga o mínimo
e abre o tempo que perpassa
sob os alardes ferozes do vivido.
Os lençóis de linho.
As paredes intactas.
Os quadros imóveis.
As camas confessas,
os travesseiros de algodão,
os habitantes
desaparecidos do lugar.
Os segredos da família, o seu desamparo
além de todas as cousas adiadas e pressentidas,
os seus desejos violentos e a sua insônia.
A casa abriga o máximo e deixa desabrigado o mínimo.
As tardes interrompidas, o absurdo paralisado.
As sobras que predizem
o não dizer.
O rosto insular.
Pedaços da dor, alimentos. Seus restos.
Os guizos do silêncio.
Os sinos, a mesa posta.
Aventura da memória farta.
Mãe. Pai. Vô. Vó. Irmãos.
Febre e deslumbramento.
A casa sobrevive em sua turbulência
de sombra e solidão possuídas.
Detida por arranhões, os alicerces rompidos.
Noturna e ferida
por procelas não esquecidas.
A casa hospeda o íntimo,
a árvore, a genealogia, os quintais,
as mangueiras da infância,
os pássaros imaginários, os bens audíveis da alma,
o espelho e as suas trincas,
as alegrias e as tristezas.
A casa,
o seu ser risível,
a profecia do estranhamento
que reabita
anuncia
sentimentos, alucinações
e os seus próprios vazios.
A casa e o seu interior.
A fala agressiva. Provocações.
Manhã envelhecida.
E outra vez
os seus sóis.
A casa expulsa o íntimo e o seu mínimo.
As raízes. As lembranças do amor.
As fantasias mais cruéis.
O olhar deveras possessivo e os seus fantasmas.
p
Diego Mendes Sousa nasceu em 1989, em Parnaíba, PI. Poeta, cronista, crítico, memorialista. Autor, dentre outros, de Divagações (2006); Fogo de alabastro (2011); Velas náufragas (2019) e Rosa numinosa (2022).
MONTEIRO, Dílson Lages. Haicais do Sol. Teresina: Nova Aliança, 2023. . .
Jaçanã na lagoa
piando alto, alto
todas as tardes. . . . .
Sapoti doce
moderida de morcegos
apodreceu no chão . . .
p
Dílson Lages Monteiro vive em Teresina, PI. Nasceu em 1973, em Barras do Marataoã, PI. Ficionista, poeta, ensaísta. Atua no magistério como professor de linguagens há três décadas. Edita, desde 2002, o portalentretextos.com.br . Autor, dentre outros, de O sabor dos sentidos (poemas, 2001); O morro da casa-grande (romance, 2011) e Ares e lares de amores tantos (poemas, 2014).