Poemas insidiosos, Caio Negreiros

NEGREIROS, Caio. Poemas insidiosos. Teresina: Fundação Quixote / Avant Garde Edições, 2012

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um ipê
no meio do tempo
sorri para a solidão

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longe dos olhos
a nuvem desfia
o milagre das águas

p

Caio Negreiros é ex-atleta aposentado compulsoriamente. Estuda música com sucesso duvidoso. Poeta e Procurador do Município de Teresina. É autor dos livros: A decadência das horas, Portal do Hades e Sobras do dia (Edições Não-Ser).

As cinzas as palavras, Adriano Lobão Aragão

ARAGÃO, Adriano Lobão. As cinzas as palavras. 2.ed. Teresina: Desenredos, 2014.

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ENTÃO

em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda

somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa

quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata

somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce

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AS CAPAS OS DISCOS

ontem eu vi o disco da vaca à venda na galeria
onde há muito naqueles campos estranhos me perdi
entre os riscos do vinil motocicleta e sinfonia

ontem eu vi um velho em um quadro carregando lenha
adornando em parede destroçada a capa de um álbum
e a iluminada escuridão de um dirigível de chumbo

ontem eu vi o álbum branco que depois de muitos anos
pude perceber as matizes dispersas de suas cores
e seu discreto nome de besouro impresso em relevo

mas há muito dispostos em silêncio seus sons evocam
sonora imagem retida na retina da memória

P

Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, 1977.  Autor, dentre outros, de Entrega a própria lança na rude batalha em que morra (poemas, 2005), Yone de Safo (poemas, 2007) e Os intrépidos andarilhos e outras margens (romance, 2012). A segunda edição de As cinzas as palavras mantém o texto original da primeira edição, lançada em 2009 e que contou com uma tiragem limitada de apenas 80 exemplares.

Pedra em sobressalto, Francisco Miguel de Moura

MOURA, Francisco Miguel de. Pedra em sobressalto. Rio de Janeiro: Pongetti, 1974.
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SECO

Nos dentes francos,
nos olhos úmidos,
o poema esmaga-se.

E morre comigo
o tentado desfeito,
na raiz esquálida.

(Se não floresce
na terra lavada
do sangue dos homens).

Das rugas e fráguas
nascem mil poemas.

Na poeira, crescem
da nuvem do rosto.

Vão permanecer.

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MOMENTO

Muito azul no dia,
tudo existe em mim,
sem expressão.

Orvalho,
manhã firme,
aves nos ramos,
flores virgens, cores:
– Jogo os braços no ar.

A flor mais simples,
mirando o sol,
vai desprendendo
______perfume,
__________pela clareira.

Naquele instante
o céu diminuiu.

p

Francisco Miguel de Moura nasceu em Picos, PI, em 1933. Publicou as obras Areias (poemas, 1966); Linguagem e comunicação (reunião de ensaios sobre a obra do romancista O.G. Rego de Carvalho, 1972).

As medicinas, Sebastião Edson Macedo

MACEDO, Sebastião Edson. As medicinas. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010.

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UMA ABÓBADA IMPORTANTE

para quem tinha enormes montanhas postas em movimento
e zelava os contrafortes do amor
é estranho que abrevie na boca a imensidão do tempo
esse tempo roxo sem tamanho algum

porque já habitam árvores de páginas muito incertas
as difusas velocidades da dor
e é provável que vocês nunca mais façam os olhos
desses olhos queridos ao longo do céu

para quem tinha acabado de perceber o atrevimento da morte
hora de atrelar um carro ao boi

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DOIS ACASOS TRÊS

esperei muitas folhas caírem pela tua aparição em meu correio
diminuí os olhos risquei ofertas de quarto e sala e foram ruas
com pessoas de toda sorte desaparecendo em teu nome tão pequeno

não sou capaz de precisar o que escapou das iscas na minha sede
nem mesmo o meu cabelo cortado ou não e a alameda esta tarde
que tomei sem acaso para evitar o desconto dos teus compromissos
posto como uma vida real entre outras vidas num recomeço decerto

sei que fica repleta a hipótese da alegria remota a próxima estação

por isso persiste diante de mim a árvore de tua serena mensagem
simples como conviria a uma última caminhada junto até a condução

p

Sebastião Edson Macedo nasceu em Floriano, interior do Piauí, em 1974. Publicou Para apascentar o tamanho do mundo (Oficina Raquel, 2006) e Cego puro(UFRJ/FL, 2004).

Ares e lares de amores tantos, Dílson Lages Monteiro

MONTEIRO, Dílson Lages. Ares e lares de amores tantos. Teresina: Entretextos, 2014.

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ROUPA NOVA

Acordo a madrugada
e repouso em mim a noite que dormiu
demais
para despertar a manhã
e vestir-me de céu.

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REMÉDIO PARA RESSACA

A mulher de vermelho
molha as flores da passarela
e resgata o passo do pássaro
na manhã embriagada.

p

Dílson Lages Monteiro nasceu em Barras do Marathaoan, PI, em 1973. Professor, poeta e romancista. Publicou, entre outros, Colmeia de concreto (poemas, 1997); O sabor dos sentidos (poemas, 2001); Texto argumentativo – teoria e prática (didático, 2007); O morro da casa-grande (romance, 2009); O rato da roupa de ouro (infantil, 2013).

Os gatos quando os dias passam, Thiago E

E, Thiago. Os gatos quando os dias passam. Rio de Janeiro: 7Letras, 2021.

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Compasso |

talvez | por amor à música
teria a gata | uma pauta
:
compor | só os sons necessários
ser a duração da pausa |

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Os gatos quando os dias passam

[ segunda ]
a gata
só ama com as unhas:
o afeto destrói
alguns móveis da sala.

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[ terça ]
coração selvagem:
chega
pisa
pesa
azunha –
felinos ferem para confiar

*

[ quarta ]
noite quente:
um gato deitado
no teto do carro.

a leitura
dura
um pulo!

Gatos são haikais?

*

[ quinta ]
poemas de pelos:
a leitura
dura
um pulo –

gatos ou haikais?

*

[ sexta ] às 7h15
sofá no monturo:
de bruços
a gata da rua
faz sala pro mundo

( às 14h )

das patas
das gatas
surgem agulhas:
máquina de descostura

*

[ sábado ] tanka às 17h
a gata boceja
estirada
no meu colo:
um rabo-de-tesoura
corta o céu da tarde

*

[ domingo ]
shhh… felinos dormem
setenta por cento
do tempo:
realidade e sonho
o gato não separa

p

Thiago E nasceu em Teresina, Piauí. É filho da Neide e do Zorro. Publicou Cabeça de sol em cima do trem (disco e livro). Foi um dos criadores da revista Acrobata. Integrou por 12 anos a banda Validuaté, com a qual lançou os álbuns Pelos pátios partidos em festa; Alegria girar; Este lado para cima; e Validuaté ao vivo.

Quando todos os acidentes acontecem, Manoel Ricardo de Lima

LIMA, Manoel Ricardo de. Quando todos os acidentes acontecem. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

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AREIA

a água dorme no fundo
da casa, mas tudo dorme
no fundo da casa, se uma
esfera de papéis
avulsos, o grampo do fundo
da esfera desfeito

o exílio encostado ao lado
da janela, uma ou
duas árvores, alguém conversa
o tempo inteiro e fala alto
sobre desertos sem
qualidade –
uma linha muda, um vinco
no chão

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ESBOÇO

um caderno aberto sabe,
é raspa e fresta, sargaço e
poeira ranheta. dobrar com
muita força o buraco de cupim
no centro da mesa

gosto muito da palavra cascalho

miséria e alegria de chuva, o cheiro
desta poeira ranheta molhada
no meu rosto

p

Manoel Ricardo de Lima nasceu em Parnaíba, PI, 1970. É professor de literatura e doutor em teoria da literatura (UFSC). Publicou Embrulho (7Letras), Falas inacabadas, com Elida Tessler (Tomo Editorial), Entre percurso e vanguarda – alguma poesia de P. Leminski (Annablume), As mãos (7Letras), Outra manhã, com Aníbal Cristobo e Eduardo Frota (Dragão do Mar), As mãos / The hands, com tradução de Sérgio Bessa (Lumme Editor) e 55 começos (Editora da Casa). Organizou as coletâneas A nossos pés (Editora da Casa / Dantes Editora) e A visita, com Isabella Marcatti (Barracuda). Coordena a coleção Móbile, de mini-ensaios (Lumme editor), e a série Alpendre de poesia, com Carlos Augusto Lima (Editora da Casa). Bolsista de Pós-Doutorado, CNPQ, com pesquisa sobre Joaquim Cardozo e Mário Faustino.

Cabeça de sol em cima do trem, Thiago E

E, Thiago. Cabeça de sol em cima do trem. Teresina: Corsário, 2013.

MURO
s.m.
 
o que há dentro do muro não é assim tão bruto ; um pensamento sofre na argamassa que lhe cobre ; angústia o muro sente, desde antigamente : é cego todo sempre e só sabe apartar gente. há pouco ouviu do chão, com voz de escuridão, que existem as paredes – rijas tal qual ele ; a diferença é que elas têm uma janela, e assim, pela janela, a parede enxerga. janela é uma abertura – não dói, não sutura ; buraco sem reboco movendo-se no corpo ( se a obra tem janela, parede é o nome dela ) cimento e cal sem furo julgam ser um muro. o muro, truvo e mudo, pensa e pensa em tudo : sair daquele escuro e ver a luz do mundo, deixar de ser um muro abrindo em si um furo ainda que esse corte lhe tombe à nula sorte – não sabe como, ainda, mudar a sua química ( rejeita a vil certeza de não ter vista acesa ) deseja em seu chapisco, sim! correr o risco de ter a pele aberta e sentir o que é a janela ; e mesmo sem saber como vai ser outro ser, o muro quer saída, mudar, mover a vida – quer nem que seja a ida da simples dobradiça ; ou algo do porvir que lhe tire deste aqui

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s.f.
a língua é um triste molusco, chora um pranto negro e escuro ( molusco triste é essa língua ) lembra e lambe sua dor fina ; dentro da boca, tal molusco chora a falta do seu casco : quer de volta o tempo justo, voltar pra lenda do passado ; lenda velha, antes da boca, tinha concha e casa, escudo e força, mas, num mistério da matéria perdeu a parte mais eterna – se fez só língua e se desintegra ; a língua é um triste molusco já sem esperança, no escuro, de reaver seu casco, ter futuro, resigna-se com riso de chumbo ; como lhe resta ser mesmo língua, linguagem motor – sempre e ainda – é na boca pá e palavra ( fala igual como quem cava ) cava com o corpo um liso assoalho – chão de carnes gêmeas, molhado, buscando na cabeça o antigo casco : roupa e casa, escudo e agasalho ; a língua é um triste molusco, já não sabe se é carne ou um soluço – sem concha, se reinventa no escuro – sem cara, existe feito um espectro espasmo movimento um obgesto

p

Thiago E, músico em reabilitação labiríntica, professor com problemas de visão, gago integrante da banda Validuaté, com a qual lançou dois CDs: Pelos pátios partidos em festa (2007) e Alegria girar (2009). Com o grupo Academia Onírica, editou zines, o CD Veículo q.s.p. e a revista AO (2010 a 2012). Lançou o CD de poesia Cabeça de sol em cima do trem (2013).

Bifurcações, Demetrios Galvão

GALVÃO, Demetrios. Bifurcações. São Paulo: Patuá, 2014.

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HERDEIROS

hão de florescer herdeiros

.             gestados em um compartimento manso

em águas de balanço leve

dentro de nós

.             o desenho que fazemos já tem nome

é uma derivação da palavra amor.

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BIFURCAÇÕES

ao som de the doors

os animais do inverno hoje são luas.
rubens zárate

bifurcar-se é inventar
um outro, outros…
figuras derivadas de uma cosmologia sem vértebras:
.                                    .caçada com lança e espinhos
.                                    .pescaria em céu domesticado.

.                .a escritura diz:

.                .desvendar o alimento que as águas oferecem
.                .dominar o feitiço que existe no útero da lâmina.

estranha fibra que brota das rochas e se irmana nos tendões
luz da manhã amadurecida no pulmão-estufa
experiência selvagem de animal paterno.

bifurcar-se é multiplicar imagem no espelho opaco
exercício em águas inéditas
digestão de raízes lancinantes:
.                                    .o olhar semiárido vislumbrou uma nova especiaria
.                                    .fármaco e veneno extraídos da febre de árvores púrpuras.

.                .a voz aconselha:

.                .arremesse as sementes da fé no leito orbital
.                .no planeta maior mesopotâmico
.                .na imensidão garganta da serpente luminosa.

o céu fecundo reproduz pássaros límpidos
o diafragma revela-se uma península de algaravias
estruturas semânticas cavalgam os pontos cardeais:
.                                    .o verbo-candelabro cega quando pronunciado no escuro.

bifurcar-se é contorcer os ossos
duplicar as artérias no inconfessável
estender a musculatura na dobra sonante
equilibrar-se em movimentos de rotação e translação.

.                .a experiência ensina:

.                .o viveiro de moinhos potencializa o corpo oblíquo
.                .o sangue caudaloso transborda o contorno original
.                .e inunda o outro, no milagre da enchente,
.                .na abundância mar da imaginação líquida.

útero incandescente banhado em larvas
a ternura amolece os pés:
.                                    .continente que improvisa um arquipélago
.                                    .na dispersão do zênite que se desfaz.

bifurcar-se é quando um filho inventa um pai.

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Demetrios Galvão – habitante da província de Teresina (PI) – é historiador e poeta. Publicou os livros Cavalo de troia (2001),Fractais semióticos (2005), Insólito (2011) e o CD Um pandemônio léxico no arquipélago parabólico (2005). Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog poesia tarja preta (2010-2012) e da AO Revista (2011-2012), além de ter participado do CD Veículo q.s.p. – quantidade suficiente para (2010). Atualmente é um dos editores da revista Acrobata.