Ephemera

DOBAL, H. Ephemera. Teresina: Edufpi, 1995.
– Poemas

CANTIGA DE VIVER

Sozinho na cama
um homem espera sua hora.
A inesperada hora de tantos.

A vida é uma cantiga triste
mais triste e à-toa que a das andorinhas
– Las oscuras golondrinas
tão mal vivida
tão mal ferida
tão mal cumprida.

A vida é uma cantiga alegre:
o primeiro sorriso de cada filho
e todos os microamores
que inutilizam
a vitória da morte.

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PROFANAÇÃO DO CEMITÉRIO DA PRAIA DO COQUEIRO

I – Os mortos

Cadáveres anônimos vêm dar nessa praia pobre
são mortos que as correntes do mar
trazem de outras praias, trazem talvez do Ceará,
são corpos que os dias de morto no mar vão decompondo,
é um corpo morto semi-comido pelos peixes
meio mutilado pelos caranguejos.
É só um corpo morto – sem nome
sem história
sem CPF.

II – O cemitério

Mãos anônimas
mãos caridosas
mãos cristãs
cavam covas na areia
preparam um cemitério pobre
para colher os finados desconhecidos
os mortos anônimos que chegam à deriva das águas
ou alguns que morrem em terra firme
mas não têm onde cair mortos.
É só um cemitério pobre
mármore
só o mármore das areias
flores
só as flores de espumas
que as ondas deixam na praia.
É só um cemitério pobre
pouca distância separa o fósforo
dos mortos do fósforo do mar.
É só um cemitério pobre
onde a parte mortal de cada um
onde a tristeza da carne
se liquide em paz.

III – A profanação

Sem temor de Deus
sem respeito aos mortos,
sem respeito à morte
nesse chão dos mortos,
como se fosse chão de ninguém
um invasor fez construir uma casa
não casa de morar
casa de farrear.
Solo profanado
um cemitério pobre
pobres posseiros mortos
despejados de seus túmulos

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P

H. Dobal (Teresina, 1927 – 2008), poeta, contista; autor, dentre outros, de O tempo consequente (poemas, 1966); O dia sem presságios (poemas, 1970); A província deserta (poemas, 1974); Um homem particular (contos, 1987). 

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