A BOA VISÃO DE UMA TRAMA EDITORIAL

Entrevista concedida por Wanderson Lima para Floriano Martins, em outubro de 2011, publicada no Diário do Nordeste

FLORIANO MARTINS | Quando em 2009, pensaste em sistematizar uma publicação periódica através da Internet, juntamente com Adriano Lobão Aragão, qual era o plano editorial?

WANDERSON LIMA | Não tínhamos um plano editorial bem delineado. Mas duas coisas estavam claras em minha cabeça, e creio que na do Adriano Lobão também – se isto pode ser chamado rigorosamente de “plano editorial” não sei. Primeiro, queríamos um espaço aberto, cosmopolita: nada dessa coisa de usar a revista para “divulgar os valores da terra” nem de transformá-la na igrejinha onde só a “nossa” turma tem voz.  Tínhamos consciência de que o diálogo com a diversidade do Brasil, com Portugal e com a América Latina seria imprescindível. Em segundo lugar, desejávamos que a dEsEnrEdoS alcançasse o meio-termo entre as revistas acadêmicas – chamo assim àquelas cheias de protocolos, em geral ligadas a departamentos de letras ou programas de pós-graduação – e as revistas de debate, com textos mais livres, formal e metodologicamente falando, que enfrentam com mais liberdade e empenho subjetivo os temas que discutem, e são mais atentas à contemporaneidade – como é o caso da Agulha, da Zunái, do Rascunho, da Sibila e da Celuzlose, entre outras. Estes dois “princípios” nos obrigou a incluir na dEsEnrEdoS  muitas seções, algumas voltadas para a criação literária – coisa dispensável ou de pouca relevância para a maioria das revistas acadêmicas – e outras para reflexão crítica. Além disso, na parte crítica criamos variadas seções para que nenhum texto fosse dispensado por ser mais ou menos rigoroso do ponto de vista acadêmico, mais ou menos extenso, mais ou menos subjetivo. Para ser mais preciso, a parte crítica tem quatro subdivisões na revista: na seção “Artigo acadêmico”, ficam os textos escritos dentro dos protocolos exigidos pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e pelos diversos programas de pós-graduação espalhados pelo país. A seção “Ensaio” é voltada para textos com um toque mais informal e subjetivo, sem necessidade de tanta referência bibliográfica, seguindo, neste sentido, a tradição fundada por Montaigne e tão bem captada na definição que Ortega y Gasset deu ao ensaio: “A ciência, menos a prova explícita”. A seção “Prosa” ficou reservada tanto para os textos abertamente ficcionais como para aqueles de caráter híbrido e semificcional, como é o caso da crônica. Por fim, temos a seção “Resenha”, cujo nome já é demasiado explicativo. Sei quão questionável pode ser esta divisão, mas penso que, apesar disso, ela é um excelente farol para o leitor: se ele nos freqüenta habitualmente, já sabe o que pode ou não esperar de cada seção. Enquanto as seções “Artigo acadêmico” e “Resenha” estão mais para o que chamei revista acadêmica, naquelas denominadas “Ensaio” e “Prosa” nos aproximamos das aqui denominadas revista de debate. Sublinho que a identidade da dEsEnrEdoS está mais evidente na parte não acadêmica, por dois motivos: os próprios membros da revista costumam publicar ensaios e, além disso, enquanto os autores de “Ensaio” e “Prosa”, assim como de “Entrevista”, são geralmente convidados os que publicaram artigos acadêmicos e resenhas nos enviam espontaneamente seus trabalhos.

FLORIANO | Qual a razão de seu nome, dEsEnrEdoS, incluindo esse curioso tratamento dado às letras?

WANDERSON | Simplesmente não sei! Só posso dizer que gosto muito do nome e desse tratamento dado às letras, que faz com que a irreverência prevista no significado salte para o significante. Era para se chamar Amálgama, mesma denominação de uma revista impressa (a partir de certa altura ela virou um jornal) que o Adriano, eu e outros amigos editamos esporadicamente entre 2002 e 2004. O problema é que já existia na internet, se não me engano, dois sites chamados Amálgama, um deles inclusive tratava de literatura. Foi então que o Adriano trouxe a sugestão de dEsEnrEdoS, que acatei de pronto pela referência ao belo conto de Guimarães Rosa.

FLORIANO | Como funciona a revista em termos de circulação? Quais as tuas táticas de difusão?

WANDERSON | Acho que a dEsEnrEdoS sofre de um mal não raro entre as revistas similares: seus editores são apaixonados pela literatura, fazem tudo com um amor genuíno pela difusão da cultura, mas são péssimos propagandistas. Devido a isso, a divulgação é a mais convencional possível: lista de e-mails e chamadas em blogs nossos e de colaboradores. Nunca fui a nenhum jornal impresso, a nenhuma emissora de TV e mesmo na universidade em que sou professor, a divulgação se limita a um aviso aos meus alunos quando há nova edição no ar. Ainda assim, me impressiona o número de leitores. Alguns textos têm um número impressionante de acessos, como é o caso do ensaio “A crise da poesia brasileira contemporânea”, texto de Ranieri Ribas que saiu na primeira edição. Percebo também que muita gente que tem seu texto aprovado, por gratidão ou seja lá porque for, nos ajuda bastante na divulgação. Por fim, cabe citar os departamentos de Letras e coordenarias de programas de pós-graduação que gentilmente enviam para alunos e professores nossas chamadas para publicação.

FLORIANO | De que maneira dEsEnrEdoS convive com outros projetos circulares, no país e no exterior?

WANDERSON | Acho fundamental o diálogo com projetos semelhantes, mas, como você sabe, tal diálogo esbarra muitas vezes em posturas dogmáticas ou em vaidades pessoais que tendem a superdimensionar as diferenças e obstar a troca de experiências. Já me disseram, por exemplo, que a dEsEnrEdoS tem ojeriza por poesia concreta e visual; ora, tenho minhas restrições a este tipo de poesia, mas a revista não sou eu, nem o Adriano Lobão. Mande seu poema visual que nosso conselho editorial o julgará com isenção, pelo que ele é, e não o tomando em comparação com o soneto seiscentista. Seu eu quisesse publicar só aquilo que me agrada pessoalmente e com que eu concordo sem restrições, então meu blog individual, O fazedor, seria suficiente. Já me disseram também que, sendo a revista oriunda do Piauí, deveria valorizar mais os autores piauienses. Aí temos uma mentira e uma falácia. A mentira é fácil desfazer: basta conferir, edição a edição, o número representativo de escritores e professores nascidos no Piauí que colaboram conosco (e não porque sejam piauienses, diga-se de passagem, mas porque têm o que dizer); a falácia consiste em achar que uma categoria nada estética como o local de nascimento possa definir a essência de um escritor. O que é um escritor piauiense, ou paulista, ou roraimense? Quem achar que pode dar uma resposta bem fundamentada a esta pergunta que o faça; eu prefiro ficar com Octavio Paz: “O nacionalismo não é só uma aberração moral; é também uma falácia estética”. Em suma, a rigidez ideológica, o espírito de bairro, a preguiça e até a burrice nos impedem muitas vezes de fundar um diálogo produtivo com nossos pares. Não obstante estes problemas, sou extremamente feliz de contar com a parceria de revistas como Agulha, Celuzlose, TriploV, Imburana, RUA, AO Revista e Pequena Morte, bem como com as Edições Nephelibata. Com estes parceiros, trocamos experiências, discutimos estratégias de divulgação, sugestões de nomes, entre outros assuntos. Quanto ao exterior, tenho mais contatos com pessoas individuais do que com revistas.

FLORIANO | Acreditas que seja possível (funcional) a criação de um fórum permanente de debates, entre editores de revistas, através da Internet?

WANDERSON | Sim. Penso que assim se poderia arquitetar estratégias mais eficazes de divulgação bem com diretrizes comuns para o melhoramento das revistas e do nível cultural do país – sem que isto signifique, é claro, perda da identidade de nenhuma revista. Particularmente, tenho “no papel” a idéia de organizar um encontro, aqui em Teresina, com os editores de revistas e sites de literatura do Brasil.

FLORIANO | Como vês as possibilidades da Internet como ferramenta aplicada à cultura?

WANDERSON | Sou um entusiasta tão fervoroso que muitas vezes acabo sendo unilateral, só enxergando o lado positivo da Internet enquanto ferramenta aplicada à cultura. Acho muito apressadas e de limitado senso histórico pesquisas que culpam a Internet pelo decréscimo da leitura ou pela fragmentação do conhecimento. Não poderia, objetivamente, dar uma reposta satisfatória à sua pergunta, a menos que eu resumisse alguns argumentos que li em Pierre Lévy e Manuel Castells. No lugar de fazer isto, vou falar um pouco da minha relação subjetiva com a Internet.  Posso dizer que a Internet favoreceu, e muito, a ampliação de meus horizontes culturais. Ajudou a aprimorar meu conhecimento de línguas estrangeiras; permitiu que eu acessasse uma gama gigantesca de textos, muitos dos quais dificilmente teria acesso em versão impressa; e acima de tudo me deu a oportunidade de estabelecer diálogo com interlocutores tão especiais como Rodrigo Petronio, Paulo Franchetti, Luiz Costa Lima, Floriano Martins, Carlos Felipe Moisés, dentre outros. Vejo que falta a muitas pessoas maior conhecimento do potencial da Internet. Parece que chegamos numa fase em que dar a conhecer o que já tem na Rede é tão importante quanto expandir seu conteúdo cultural. Darei um exemplo simples e pessoal. Em 2010, ministrei em duas cidades distintas, em cursos de especialização, uma disciplina cujo nome exato já não lembro mas que tratava da literatura feita no espaço virtual, dos novos gêneros que emergiram neste espaço etc.  A certa altura, eu dividia os alunos em grupos e cada um ficava responsável de analisar uma revista virtual. Minha surpresa foi imensa quando soube que a maioria daqueles professores, diria que uns 90% deles, embora usassem a Internet com frequência, desconheciam as revistas virtuais. Mais que isso: desconheciam o Google Scholar, o SciELO, o portal Domínio Público,  o Projeto Gutenberg, o Wikisource. Tinham um conceito de blog restrito à idéia de diário online. Ressalto que se tratava de professores esforçados, com bom nível econômico e cultural, que estavam ali numa pós-graduação em literatura. No fim da disciplina, grande parte deles ressaltou que o maior contributo que demos foi possibilitá-los um uso mais proveitoso da Internet.

FLORIANO | Como devem proceder aqueles interessados em ter seus textos publicados em dEsEnrEdoS?

WANDERSON | As normas para colaboração podem se acessadas neste endereço: http://www.desenredos.com.br

FLORIANO | No momento está circulando a edição nº 10 da revista, entrando no 3º ano de atividade, o que é uma boa conquista em um país que sofre certa síndrome da novidade permanente, com os prejuízos daí decorrentes. Arriscas um balanço possível, inclusive no que diz respeito à influência da dEsEnrEdoS no ambiente virtual?

WANDERSON | Ainda não parei para pensar nisso detidamente. Mas vamos lá, vejamos. Buscamos estreitar nossos laços com Portugal e com a América Hispânica. Demos mais visibilidade para ensaístas e poetas de evidente talento que estão em começo de carreira. Divulgamos o trabalho de excelentes artistas plásticos. Tentamos, como afirmei no início, mediar o abismo entre as revistas acadêmicas e as revistas de debates. Fugindo à “barbárie do especialismo” – para lembrar de novo Ortega y Gasset –, tentamos fazer uma revista de cultura que tivesse a literatura como epicentro das Humanidades, mas nunca pensamos que a dEsEnrEdoS seria uma revista literária em sentido estrito: as artes, a religião, a filosofia, o pensamento social sempre tiveram seu espaço na revista. Fomentamos a prática da tradução, atividade fundamental para o crescimento cultural de um país. Realizamos dois dossiês com temas urgentes para o pensamento brasileiro… Enfim, empreendemos um esforço coletivo em prol da cultura cuja abrangência e influência, ao menos para mim, ainda é incerta. No máximo arrisco a dizer, sem citar exemplos pontuais, que alguns textos e entrevistas da revista podem fazer escola – mas isso é mera especulação, esperemos. No fundo, eu espero que, nestes três anos, a dEsEnrEdoS  tenha pelo menos constituído uma identidade institucional marcada pelo desejo de um debate sério e democrático – mesmo que muitos de seus textos pereçam sem leitores lá no arquivo de suas edições passadas.

FLORIANO | Esquecemos algo?

WANDERSON | Creio que não.

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