Bifurcações, Demetrios Galvão

GALVÃO, Demetrios. Bifurcações. São Paulo: Patuá, 2014.

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HERDEIROS

hão de florescer herdeiros

.             gestados em um compartimento manso

em águas de balanço leve

dentro de nós

.             o desenho que fazemos já tem nome

é uma derivação da palavra amor.

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BIFURCAÇÕES

ao som de the doors

os animais do inverno hoje são luas.
rubens zárate

bifurcar-se é inventar
um outro, outros…
figuras derivadas de uma cosmologia sem vértebras:
.                                    .caçada com lança e espinhos
.                                    .pescaria em céu domesticado.

.                .a escritura diz:

.                .desvendar o alimento que as águas oferecem
.                .dominar o feitiço que existe no útero da lâmina.

estranha fibra que brota das rochas e se irmana nos tendões
luz da manhã amadurecida no pulmão-estufa
experiência selvagem de animal paterno.

bifurcar-se é multiplicar imagem no espelho opaco
exercício em águas inéditas
digestão de raízes lancinantes:
.                                    .o olhar semiárido vislumbrou uma nova especiaria
.                                    .fármaco e veneno extraídos da febre de árvores púrpuras.

.                .a voz aconselha:

.                .arremesse as sementes da fé no leito orbital
.                .no planeta maior mesopotâmico
.                .na imensidão garganta da serpente luminosa.

o céu fecundo reproduz pássaros límpidos
o diafragma revela-se uma península de algaravias
estruturas semânticas cavalgam os pontos cardeais:
.                                    .o verbo-candelabro cega quando pronunciado no escuro.

bifurcar-se é contorcer os ossos
duplicar as artérias no inconfessável
estender a musculatura na dobra sonante
equilibrar-se em movimentos de rotação e translação.

.                .a experiência ensina:

.                .o viveiro de moinhos potencializa o corpo oblíquo
.                .o sangue caudaloso transborda o contorno original
.                .e inunda o outro, no milagre da enchente,
.                .na abundância mar da imaginação líquida.

útero incandescente banhado em larvas
a ternura amolece os pés:
.                                    .continente que improvisa um arquipélago
.                                    .na dispersão do zênite que se desfaz.

bifurcar-se é quando um filho inventa um pai.

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Demetrios Galvão – habitante da província de Teresina (PI) – é historiador e poeta. Publicou os livros Cavalo de troia (2001),Fractais semióticos (2005), Insólito (2011) e o CD Um pandemônio léxico no arquipélago parabólico (2005). Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog poesia tarja preta (2010-2012) e da AO Revista (2011-2012), além de ter participado do CD Veículo q.s.p. – quantidade suficiente para (2010). Atualmente é um dos editores da revista Acrobata.

O contra-lei e outros poemas, Elio Ferreira

FERREIRA, Elio. O contra-lei e outros poemas. 2. ed. revista e aumentada. Teresina: Edição do autor, 1997.

ÁFRICA MÃE

1

África-Mãe do primeiro AMOR,
África-Mãe do primeiro DEUS,
África-Mãe da primeira MULHER,
África-Mãe do primeiro HOMEM,
África-Mãe de todos os POVOS,
África-Mãe da RAÇA HUMANA.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
ele era o rei,
ela era a rainha,
um outro súdito.
Um era sacerdote e curandeiro,
o outro guerreiro.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era cirurgião, o outro inventor
e ferreiro,
um outro poeta, cantor
e alabê.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era mineiro, o outro babalorixá,
um outro alufá.
Um era lavrador e vaqueiro,
o outro oleiro.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
uma era professora, a outra flandreira,
uma outra costureira.
Uma era rendeira, a outra doméstica
e comerciante.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era marinheiro, o outro advogado
e historiador.
Um era carpinteiro e pedreiro,
o outro construtor.

O meu avô e a minha avó
construíram as Américas,
O meu avô e a minha avó
construíram o Brasil.

2

O meu avô e a minha avó
foram escravizados na Europa,
e a Europa ficou rica,
e os ricos da Europa ficaram + ricos.

O meu avô e a minha avó
foram escravizados nas Américas,
e os colonos das Américas ficaram ricos,
e os filhos,
e os netos,
e os tataranetos
dos colonos ricos das Américas ficaram + ricos
+ podres-de-rico
+ podres.

O meu avô e a minha avó
construíram as Américas,
o meu avô e a minha avó

construíram o Brasil.

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Elio Ferreira nasceu em Floriano, PI, em 1955. Poeta, capoerista e rapper. B.Boy do Movimento Hip-Hop no Piauí. Professor de literatura na Universidade Estadual do Piauí. Publicou Canto sem viola (1983); Poemartelos (1986); O contra-lei (1994).

Violado, Hermes Coêlho

COÊLHO, Hermes. Violado. São Paulo: Patuá, 2023.

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não houve resgate quando fui violado
as escaras da alma não pude curar
deixei-me deitar no campo de sonhos
refugiei-me neles sequei o pranto
cipó que usei para me salvar
a cada quimera desfeita eu descia um pouco
rumo à floresta densa pavores turvos
e descobri um novo mundo
no meio da fauna e flora multicolor
vivi amores calei rumores me permiti
dancei com indígenas nus na aldeia
fiz amor com botos sob a lua cheia
transformei minha dor em frenesi

p

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a seca da cidade é meu lençol
envolve a pele em ondas
cicatriza as feridas da labuta
e dos esforços ocos dos dias
aceito o açoite do cerrado
deixo meu corpo marcado
alma vagando vazia

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Hermes Coêlho nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Reporter e editor da TV Senado, em Brasília. Autor de Nu (poemas, 2002) e Violado (2023, poemas).

Rita Hayworth foi a Paris, André Gonçalves

GONÇALVES, André. Rita Hayworth foi a Paris. Teresina: Quimera, 2020.

Rita Hayworth foi a Paris porque sonha em capítulos“, assim começa tal literatura de eventos psíquicos, fragmentada, como se estivéssemos dormindo e acordando para, na vigília, peder a certeza do que houve no sono. Além de ironia, humor e violência, um bom manejo lúdico da língua constrói os personagens. Entre o boletim de ocorrência e a receita culinária, entre a carta e a esperança, entre o bloco de anotação e o esquecimento, André Gonçalves constrói sua nova metanarrativa, repensando formas de contar histórias enquanto as escreve. [Thiago E]

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André Gonçalves vive e trabalha em Teresina, Piauí. Publicou Coisas de amor largadas na noite (2008), Pequeno guia das mínimas certezas (2013), Entrevistas Revestrés (coorganizador, 2014) e Paris (fotografias, 2019).

 

 

A BOA VISÃO DE UMA TRAMA EDITORIAL

Entrevista concedida por Wanderson Lima para Floriano Martins, em outubro de 2011, publicada no Diário do Nordeste

FLORIANO MARTINS | Quando em 2009, pensaste em sistematizar uma publicação periódica através da Internet, juntamente com Adriano Lobão Aragão, qual era o plano editorial?

WANDERSON LIMA | Não tínhamos um plano editorial bem delineado. Mas duas coisas estavam claras em minha cabeça, e creio que na do Adriano Lobão também – se isto pode ser chamado rigorosamente de “plano editorial” não sei. Primeiro, queríamos um espaço aberto, cosmopolita: nada dessa coisa de usar a revista para “divulgar os valores da terra” nem de transformá-la na igrejinha onde só a “nossa” turma tem voz.  Tínhamos consciência de que o diálogo com a diversidade do Brasil, com Portugal e com a América Latina seria imprescindível. Em segundo lugar, desejávamos que a dEsEnrEdoS alcançasse o meio-termo entre as revistas acadêmicas – chamo assim àquelas cheias de protocolos, em geral ligadas a departamentos de letras ou programas de pós-graduação – e as revistas de debate, com textos mais livres, formal e metodologicamente falando, que enfrentam com mais liberdade e empenho subjetivo os temas que discutem, e são mais atentas à contemporaneidade – como é o caso da Agulha, da Zunái, do Rascunho, da Sibila e da Celuzlose, entre outras. Estes dois “princípios” nos obrigou a incluir na dEsEnrEdoS  muitas seções, algumas voltadas para a criação literária – coisa dispensável ou de pouca relevância para a maioria das revistas acadêmicas – e outras para reflexão crítica. Além disso, na parte crítica criamos variadas seções para que nenhum texto fosse dispensado por ser mais ou menos rigoroso do ponto de vista acadêmico, mais ou menos extenso, mais ou menos subjetivo. Para ser mais preciso, a parte crítica tem quatro subdivisões na revista: na seção “Artigo acadêmico”, ficam os textos escritos dentro dos protocolos exigidos pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e pelos diversos programas de pós-graduação espalhados pelo país. A seção “Ensaio” é voltada para textos com um toque mais informal e subjetivo, sem necessidade de tanta referência bibliográfica, seguindo, neste sentido, a tradição fundada por Montaigne e tão bem captada na definição que Ortega y Gasset deu ao ensaio: “A ciência, menos a prova explícita”. A seção “Prosa” ficou reservada tanto para os textos abertamente ficcionais como para aqueles de caráter híbrido e semificcional, como é o caso da crônica. Por fim, temos a seção “Resenha”, cujo nome já é demasiado explicativo. Sei quão questionável pode ser esta divisão, mas penso que, apesar disso, ela é um excelente farol para o leitor: se ele nos freqüenta habitualmente, já sabe o que pode ou não esperar de cada seção. Enquanto as seções “Artigo acadêmico” e “Resenha” estão mais para o que chamei revista acadêmica, naquelas denominadas “Ensaio” e “Prosa” nos aproximamos das aqui denominadas revista de debate. Sublinho que a identidade da dEsEnrEdoS está mais evidente na parte não acadêmica, por dois motivos: os próprios membros da revista costumam publicar ensaios e, além disso, enquanto os autores de “Ensaio” e “Prosa”, assim como de “Entrevista”, são geralmente convidados os que publicaram artigos acadêmicos e resenhas nos enviam espontaneamente seus trabalhos.

FLORIANO | Qual a razão de seu nome, dEsEnrEdoS, incluindo esse curioso tratamento dado às letras?

WANDERSON | Simplesmente não sei! Só posso dizer que gosto muito do nome e desse tratamento dado às letras, que faz com que a irreverência prevista no significado salte para o significante. Era para se chamar Amálgama, mesma denominação de uma revista impressa (a partir de certa altura ela virou um jornal) que o Adriano, eu e outros amigos editamos esporadicamente entre 2002 e 2004. O problema é que já existia na internet, se não me engano, dois sites chamados Amálgama, um deles inclusive tratava de literatura. Foi então que o Adriano trouxe a sugestão de dEsEnrEdoS, que acatei de pronto pela referência ao belo conto de Guimarães Rosa.

FLORIANO | Como funciona a revista em termos de circulação? Quais as tuas táticas de difusão?

WANDERSON | Acho que a dEsEnrEdoS sofre de um mal não raro entre as revistas similares: seus editores são apaixonados pela literatura, fazem tudo com um amor genuíno pela difusão da cultura, mas são péssimos propagandistas. Devido a isso, a divulgação é a mais convencional possível: lista de e-mails e chamadas em blogs nossos e de colaboradores. Nunca fui a nenhum jornal impresso, a nenhuma emissora de TV e mesmo na universidade em que sou professor, a divulgação se limita a um aviso aos meus alunos quando há nova edição no ar. Ainda assim, me impressiona o número de leitores. Alguns textos têm um número impressionante de acessos, como é o caso do ensaio “A crise da poesia brasileira contemporânea”, texto de Ranieri Ribas que saiu na primeira edição. Percebo também que muita gente que tem seu texto aprovado, por gratidão ou seja lá porque for, nos ajuda bastante na divulgação. Por fim, cabe citar os departamentos de Letras e coordenarias de programas de pós-graduação que gentilmente enviam para alunos e professores nossas chamadas para publicação.

FLORIANO | De que maneira dEsEnrEdoS convive com outros projetos circulares, no país e no exterior?

WANDERSON | Acho fundamental o diálogo com projetos semelhantes, mas, como você sabe, tal diálogo esbarra muitas vezes em posturas dogmáticas ou em vaidades pessoais que tendem a superdimensionar as diferenças e obstar a troca de experiências. Já me disseram, por exemplo, que a dEsEnrEdoS tem ojeriza por poesia concreta e visual; ora, tenho minhas restrições a este tipo de poesia, mas a revista não sou eu, nem o Adriano Lobão. Mande seu poema visual que nosso conselho editorial o julgará com isenção, pelo que ele é, e não o tomando em comparação com o soneto seiscentista. Seu eu quisesse publicar só aquilo que me agrada pessoalmente e com que eu concordo sem restrições, então meu blog individual, O fazedor, seria suficiente. Já me disseram também que, sendo a revista oriunda do Piauí, deveria valorizar mais os autores piauienses. Aí temos uma mentira e uma falácia. A mentira é fácil desfazer: basta conferir, edição a edição, o número representativo de escritores e professores nascidos no Piauí que colaboram conosco (e não porque sejam piauienses, diga-se de passagem, mas porque têm o que dizer); a falácia consiste em achar que uma categoria nada estética como o local de nascimento possa definir a essência de um escritor. O que é um escritor piauiense, ou paulista, ou roraimense? Quem achar que pode dar uma resposta bem fundamentada a esta pergunta que o faça; eu prefiro ficar com Octavio Paz: “O nacionalismo não é só uma aberração moral; é também uma falácia estética”. Em suma, a rigidez ideológica, o espírito de bairro, a preguiça e até a burrice nos impedem muitas vezes de fundar um diálogo produtivo com nossos pares. Não obstante estes problemas, sou extremamente feliz de contar com a parceria de revistas como Agulha, Celuzlose, TriploV, Imburana, RUA, AO Revista e Pequena Morte, bem como com as Edições Nephelibata. Com estes parceiros, trocamos experiências, discutimos estratégias de divulgação, sugestões de nomes, entre outros assuntos. Quanto ao exterior, tenho mais contatos com pessoas individuais do que com revistas.

FLORIANO | Acreditas que seja possível (funcional) a criação de um fórum permanente de debates, entre editores de revistas, através da Internet?

WANDERSON | Sim. Penso que assim se poderia arquitetar estratégias mais eficazes de divulgação bem com diretrizes comuns para o melhoramento das revistas e do nível cultural do país – sem que isto signifique, é claro, perda da identidade de nenhuma revista. Particularmente, tenho “no papel” a idéia de organizar um encontro, aqui em Teresina, com os editores de revistas e sites de literatura do Brasil.

FLORIANO | Como vês as possibilidades da Internet como ferramenta aplicada à cultura?

WANDERSON | Sou um entusiasta tão fervoroso que muitas vezes acabo sendo unilateral, só enxergando o lado positivo da Internet enquanto ferramenta aplicada à cultura. Acho muito apressadas e de limitado senso histórico pesquisas que culpam a Internet pelo decréscimo da leitura ou pela fragmentação do conhecimento. Não poderia, objetivamente, dar uma reposta satisfatória à sua pergunta, a menos que eu resumisse alguns argumentos que li em Pierre Lévy e Manuel Castells. No lugar de fazer isto, vou falar um pouco da minha relação subjetiva com a Internet.  Posso dizer que a Internet favoreceu, e muito, a ampliação de meus horizontes culturais. Ajudou a aprimorar meu conhecimento de línguas estrangeiras; permitiu que eu acessasse uma gama gigantesca de textos, muitos dos quais dificilmente teria acesso em versão impressa; e acima de tudo me deu a oportunidade de estabelecer diálogo com interlocutores tão especiais como Rodrigo Petronio, Paulo Franchetti, Luiz Costa Lima, Floriano Martins, Carlos Felipe Moisés, dentre outros. Vejo que falta a muitas pessoas maior conhecimento do potencial da Internet. Parece que chegamos numa fase em que dar a conhecer o que já tem na Rede é tão importante quanto expandir seu conteúdo cultural. Darei um exemplo simples e pessoal. Em 2010, ministrei em duas cidades distintas, em cursos de especialização, uma disciplina cujo nome exato já não lembro mas que tratava da literatura feita no espaço virtual, dos novos gêneros que emergiram neste espaço etc.  A certa altura, eu dividia os alunos em grupos e cada um ficava responsável de analisar uma revista virtual. Minha surpresa foi imensa quando soube que a maioria daqueles professores, diria que uns 90% deles, embora usassem a Internet com frequência, desconheciam as revistas virtuais. Mais que isso: desconheciam o Google Scholar, o SciELO, o portal Domínio Público,  o Projeto Gutenberg, o Wikisource. Tinham um conceito de blog restrito à idéia de diário online. Ressalto que se tratava de professores esforçados, com bom nível econômico e cultural, que estavam ali numa pós-graduação em literatura. No fim da disciplina, grande parte deles ressaltou que o maior contributo que demos foi possibilitá-los um uso mais proveitoso da Internet.

FLORIANO | Como devem proceder aqueles interessados em ter seus textos publicados em dEsEnrEdoS?

WANDERSON | As normas para colaboração podem se acessadas neste endereço: http://www.desenredos.com.br

FLORIANO | No momento está circulando a edição nº 10 da revista, entrando no 3º ano de atividade, o que é uma boa conquista em um país que sofre certa síndrome da novidade permanente, com os prejuízos daí decorrentes. Arriscas um balanço possível, inclusive no que diz respeito à influência da dEsEnrEdoS no ambiente virtual?

WANDERSON | Ainda não parei para pensar nisso detidamente. Mas vamos lá, vejamos. Buscamos estreitar nossos laços com Portugal e com a América Hispânica. Demos mais visibilidade para ensaístas e poetas de evidente talento que estão em começo de carreira. Divulgamos o trabalho de excelentes artistas plásticos. Tentamos, como afirmei no início, mediar o abismo entre as revistas acadêmicas e as revistas de debates. Fugindo à “barbárie do especialismo” – para lembrar de novo Ortega y Gasset –, tentamos fazer uma revista de cultura que tivesse a literatura como epicentro das Humanidades, mas nunca pensamos que a dEsEnrEdoS seria uma revista literária em sentido estrito: as artes, a religião, a filosofia, o pensamento social sempre tiveram seu espaço na revista. Fomentamos a prática da tradução, atividade fundamental para o crescimento cultural de um país. Realizamos dois dossiês com temas urgentes para o pensamento brasileiro… Enfim, empreendemos um esforço coletivo em prol da cultura cuja abrangência e influência, ao menos para mim, ainda é incerta. No máximo arrisco a dizer, sem citar exemplos pontuais, que alguns textos e entrevistas da revista podem fazer escola – mas isso é mera especulação, esperemos. No fundo, eu espero que, nestes três anos, a dEsEnrEdoS  tenha pelo menos constituído uma identidade institucional marcada pelo desejo de um debate sério e democrático – mesmo que muitos de seus textos pereçam sem leitores lá no arquivo de suas edições passadas.

FLORIANO | Esquecemos algo?

WANDERSON | Creio que não.

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Onde estão meus girassóis?, Carvalho Filho

CARVALHO FILHO. Onde estão meus girassóis? Parnaíba: Tremenbé, 2022.

MANUSCRITO ENCONTRADO NUM CORAÇÃO

Que páginas escuras!
São venenos em folha,
Feiticeiras astutas
Nas quais acho prazer.

Há dores
Pungentes
Em gentes
E flores

Que versos mais estranhos!
Não consigo entendê-los.
Para mim são baús
Onde encontro caveiras.

Há lábios
E seios
Enleios
De sábios

Que malignas forças!
Pouco a pouco a moleza
Domina meu caráter,
Transformando-me em vaso.

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VIDA DE FRAGMENTO

Matei meus sonhos no domingo,
Segunda-feira achei trabalho.

Terça-feira assinei tratados
Sobre a tristeza do mercado.

Gente vendendo o que não tem:
Carinho, respostas e paz.

Quarta-feira resolvi cálculos
Que me perseguem desde sexta.

Sexta-feira pareço lúcido.
Brinco com os outros fragmentos.

Sábado enxugo o mundo inteiro,
E sinceramente, lamento.

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Francisco das Chagas Souza Carvalho Filho nasceu em 1988, em Parnaíba, PI. Foi colaborador do jornal O Piauí Culturalista (2009-2021) e atualemnte é colunista na revista Piauí Poético.

Entrevista com Halan Silva

Entrevista concedida a Adriano Lobão Aragão, em 2012.

Lançado durante o Salão do Livro do Piauí, Salipi, 2011, Cambacica é mais nova criação de Halan Silva. Uma novela ambientada na Teresina dos dias atuais, repleta de referências intertextuais. Nascido em Campo Maior, em 1970, graduado em Filosofia (UFPI) e Direito (UESPI), mestre em Educação e Estudos Culturais (ULBRA- RS), Halan Kardeck Ferreira Silva publicou 16 poemas (Edições DesLivres, 1995), As formas incompletas: apontamentos para uma biografia (Oficina da Palavra/Instituto Dom Barreto, 2005), Representação e identidade cultural do vaqueiro no cinema novo (Nova Aliança, 2010) e, agora, Cambacica (Nova Aliança, 2012), mote para a conversa que se segue.

Adriano Lobão Aragão – Poesia, biografia, ensaio e, agora, novela. A que se deve essa diversificação em sua obra?

Halan Silva Não sei bem o motivo da diversidade de minha escritura. Sinto vontade de fazer e faço (dentro de minhas limitações). Ultimamente estou escrevendo um romance ambientado em minha terra, Campo Maior, não sei se vou conseguir… No início, escrevia poesia, mas creio que a poesia é o “gênero” literário mais elevado que há, não é à toa tanta verselhada por aí. A minha percepção estética me obriga a destruir noventa por cento de minha produção. Veja que se meter pelos caminhos estreitos da estética só pode ser um ato de loucura. Ernesto Sábato largou tudo pela literatura, passou  até por dificuldades financeiras, porém escreveu El tuneo. Não sei o que me prende à literatura, apenas sinto um prazer que não encontro noutros lugares: na religião, no dinheiro ou na política. De outro lado, entendo que aquele que  escreve quer se comunicar com o mundo, ainda que escrever seja um ato de solidão, mas de uma solidão que não é sinônimo de isolamento ou amargura. Enquanto estiver vivo, vou lendo e escrevendo, pois é impossível ser escritor sem antes ser um leitor.

Adriano – E seu livro Cambacica, como se originou?

Halan Depois de ler A hora da estrela, de Clarice Lispector, desta vez numa edição especial,  resolvi escrever uma novela de ficção ambientada em Teresina, isso durante os dez primeiros anos do século vinte e um. Tudo partiu da epígrafe do Livro: “Pergunta: toda história que já se contou no mundo é uma história de aflições?”. Então, eu resolvi  contar, não exatamente uma história, mas os fragmentos de uma história de amor aflito. Através desses fragmentos eu mostro Teresina no meio de um processo de transição de uma cidade pequena para uma cidade grande: De um lado, mostro os preconceitos de uma aristocracia atrasada; de outro, mostro o processo de urbanização que vai mudando a significativamente a paisagem natural e cultural de Teresina. Outro dia alguém me falou que eu deixei muita coisa de fora. Isso é a mais pura verdade, deixei. É que não pretendia fazer um inventário minucioso da cidade. A ideia era mostrar pontos de vista que poderiam ser reconhecidos pelas pessoas da cidade. O Salgado Maranhão me falou que Cambacica era uma novela infanto-juvenil e provinciana, mas não creio que seja isso não. Curioso! O Caio Douglas achou que eu escrevia à moda antiga, como ele disse parecido com o estilo de Machado de Assis, essas coisas… Embora Cabacica possa parecer sintético, eu digo que ele não é, pois deixei lacunas a fim de tornar o leitor participativo na narrativa. É impressionante como no Brasil ainda se mede um bom livro pelo número de páginas. Quando o O. G. Rego de Carvalho escreveu Ulisses entre o amor e a morte, recebeu todas as críticas possíveis – infundadas a maior parte delas, é certo hoje. Disseram que Ulisses era autobiografia (e que não é confissão na existência de um homem?), que ele não sabia escrever, que ele não tinha mais assunto, o diabo. Para mostrar que sabia escrever, o O. G. fez  Somos todos inocentes e recebeu o prêmio Coelho Neto da ABL. Durante muito tempo ele não divulgou essa premiação (ele me falou do prêmio nos anos oitenta e me pediu que guardasse sigilo).

Adriano – O.G. Rego de Carvalho foi uma grande influência?

Halan O O. G Rego de Carvalho é um belo cidadão (há um humorista que fica fazendo graça imitando o caminhado do O. G. Rego de Carvalho. Não vejo graça nenhuma, ele devia respeitar o O. G. Rego de Carvalho, pois se ele tem aquele aspecto é por conta da enfermidade). Na juventude, ele foi muito aguerrido e atuante na cidade, mas veio a doença e dele fez o que bem quis. Ele é uma influência para todos nós que gostamos de boa literatura. O jantar, que é o primeiro capítulo de Cambacica, é uma homenagem ao O.G Rego de Carvalho. O Gilvani Amorim entendeu tudo. Ele disse: “o primeiro capítulo parece do O. G. Rego de Carvalho”. No capítulo Nossa Senhora do Rosário faço um intertexto com ele, lembra que em Somos todos inocentes há uma passagem em que o personagem Raul está jogando damas? pois é, fi-lo jogar com o Dr. Ferraz… Também faço um intertexto com Assis Brasil, mais precisamente com Beira Rio Beira Vida. Dou um desfecho que ele, deliberadamente, deixou para o leitor fazer, ou seja, o destino de Luiza e Mundoca. Alguns capítulos fazem referências a outros autores: Graciliano Ramos, Miguel Torga, Machado de Assis, Manuel Bandeira.

Adriano – Promover, divulgar um livro é uma tarefa tão árdua quanto escrevê-lo?

Halan Divulgar um livro é sempre doloroso, no Piauí o doloroso vai para o superlativo. Você publica um livro e simplesmente nada acontece. O O. G Rego de Carvalho teve a sorte de receber uma série de críticas negativas no jornal O Piahuy. Tivesse ele escrito hoje, não teria espaço nos jornais de Teresina, que destina boa parte de suas páginas à coluna social (aquelas notinhas de elogio fácil). Não existe mais no país o jornalismo literário e as universidades, as públicas mormente, só produzem dissertações e teses (produzem bem), as revistas de circulação nacional fazem indicações comerciais de livros de grandes editoras. As escolas do Piauí, por hábito de consumir somente o que vem de fora, simplesmente ignoram a produção local. O governo e os municípios também ignoram a produção local. Não adianta só publicar, é preciso que haja circulação das publicações para fomentar o mercado editorial local. Os intelectuais do Piauí são, na maioria, os que leram e não lêem mais, não falam nada porque não leram absolutamente nada do que vem sendo publicado. Tudo me parece paradoxal, pois na era da informação e da tecnologia, que facilita a editoração, estamos cegos pelo excesso de luz  e aturdidos ante tantas publicações, que loucura! O professor Cineas Santos disse que no Piauí há mais escritores do que leitores e isso, ao que me parece, compromete a circulação do livro. Veja que no Rio Grande do Sul a coisa é bem diferente. Os escritores gaúchos não precisaram sair de lá para acontecer: Mário Quintana, Dionélio Machado, Josué Guimarães, Érico Veríssimo e Luís Fernando Veríssimo, enfim. As escolas públicas e privadas o adotam e eles são valorizados. O Leonardo Dias, depois que o Cineas deixou de editar, vem se arriscando por essas águas, mas o risco de afogamento é alto. Não pensem que sou pessimista, o Cineas disse-me que ninguém iria ler meu livro, que tudo ia dar em nada. O livro Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco, passou cem anos no limbo e ressurgiu das cinzas (e foi muito bom). Franz Kafka teve quarenta leitores, Konstatinos Kavafis teve meia dúzia, Fernando Pessoa, em vida, só editou Mensagem e a repercussão em Portugal foi branda. Charles Baudelaire não viu a repercussão de sua poesia e por aí vai. Um certo professor da cidade disse que os autores piauienses não sabiam escrever, que ele escrevia melhor (embora nunca tenha escrito nada). Discordo. Assis Brasil ganhou o prêmio Walmapi duas vezes e ainda o Prêmio Coelho Neto da ABL. O. G. Rego de Carvalho ganhou o Coelho Neto da ABL. H. Dobal, que era avesso à política literária, ganhou o Prêmio Jorge de Lima do INL, o Mário Faustino fez o que fez… Procurem saber quem são os escritores contemporâneos de São Paulo, do Rio, de DF, de Minas, de Santa Catarina, do Paraná, da Bahia… Não devemos nada a ninguém, é tudo uma questão de ignorância e de preconceito.

 Adriano – O que fazer diante dessa ignorância e desse preconceito?

Halan Resta seguir em frente, não dá para voltar. O Villa-Lobos dizia que escrevia cartas para o futuro e não aguardava resposta. Portanto, nestes tempos sombrios, em que já não há solidez  no mundo, publicar é antes de tudo um ato de esperança. Escrever é lutar contra ignorância, inclui-se a do autor. Digo isso por que o Mário Faustino pregava que o escritor medíocre não era inofensivo, posto que compromete seriamente a língua, enquanto que o escritor superior a engrandece.

Adriano – E quais os próximos passos do escritor Halan Silva?

Halan Como disse, no momento estou escrevendo um romance que se intitulará Atoleiro. Neste trabalho, faço uma viagem ao passado de  Campo Maior, que foi uma cidade próspera, marcada por uma linda paisagem. É para mim o maior desafio que me propus, não sei se vou conseguir. Depois, pretendo publicar alguns poemas que venho traduzindo por meio de um processo de recriação literária. O H. Dobal, que traduzia muito bem, dizia-me que para se traduzir um poema não era necessário um conhecimento aprofundado da língua alienígena, mas duas coisas essênciais: 1) Uma boa percepção poética, 2) E um conhecimento razoavel da língua para onde se vai fazer a tradução, ou melhor, a recriação poética. Como entendo que poesia é sempre algo pessoalíssimo, venho traduzindo os poemas que me agradam (esse é o critério). Pretendo fazer uma publicação alternativa, fora do mercado editorial (tipos as edições que você, Adriano, costuma fazer). Se a divina providência me favorecer, gostaria de encerrar a minha incursão escrevendo um livro de poemas. Ao dizer isso, afirmo que para mim a poesia, arte como um todo, diferentemente da ciência, que vale-se da verdade proposicional, tem um quê de mistério que me encanta, embora há quem diga que a possua por inteiro, mas eu me recuso a acreditar nisso. No dia que a arte for tomado como verdade proposiciona, eu desisto dela. Ah, estava esquecendo. eu e o João Kennedy, com base em depoimentos, estamos organizando a biografia do professor Cineas Santos, que a despeito do que possam pensar seus detratores, é uma pessoa de grande importância para a cultura do Piauí.

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Adriano Lobão Aragão é autor de Os intrépidos andarilhos e outras margens (romance, 2012) e  Destinerário (poemas, 2019), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

Insólito, de Demetrios Galvão

Entrevista com Demetrios Galvão concedida a Adriano Lobão Aragão, em janeiro de 2012, após a publicação de seu livro de poemas Insólito.

Adriano Lobão Aragão – Por que Insólito?

Demetrios Galvão – Gosto da palavra insólito primeiramente por sua sonoridade – breve, encorpada; segundo, porque a própria palavra realiza o seu significado e produz uma imagem bastante interessante, além do que é uma palavra pouco usada, o que lhe dá um ar vigoroso e ao mesmo tempo misterioso; terceiro, pela coincidência de já existir no conjunto dos poemas do livro um texto intitulado “insólito”, que funciona como se fosse um verbete, é um poema que começa assim “insólito: carregar cemitérios e ferrugens nos bolsos…”. Dá a impressão que o poema constrói o significado da palavra. Assim, é como se o poema produzisse novos sentidos para a palavra “insólito”, mas ao mesmo tempo, dialogando com o significado dela que quer dizer, na acepção do dicionário, “o incomum, o não habitual, o estranho”; por último, que o significado de “insólito” diz muito sobre a minha construção poética – a produção de imagens não habituais, estranhas. Pois me debruço sobre a criação de imagens-poéticas que foge do corriqueiro em um diálogo direto com as estratégias surrealistas de transfiguração do real. Então, faço o estranho virar a experiência do estranhamento, essa é uma das propostas do livro, como bem aponta o poeta Rubervam Du Nascimento na apresentação do livro.

Adriano – Trata-se de uma busca pela desautomatização da palavra?

Demetrios – Sei bem que os textos criam imagens e que as imagens também produzem textos. Mas no meu caso as imagens ocupam um lugar central e o meu esforço é em produzir imagens não habituais, através de um trabalho de deslocamento, de tirar as coisas que comumente tem lugar certo, estabelecido na prateleira cartesiana – nomeado, classificado, selecionado,… Dito isso, o estranhamento que procuro criar resulta de um trabalho de curto-circuito na linguagem – junção de mundos distantes para a feitura de um outro. Tento mobilizar a linguagem não para a realização do óbvio ou do “realista”, isso não me interessa. Mas pelo contrário, para transfigurar essa “realidade” e inventar outros mundos através da linguagem.

Adriano – Em que aspectos a poesia de Insólito se diferencia de Cavalo de Troia (2001) e Fractais Semióticos (2005)?

DemetriosCavalo de Troia é um livro em que a mensagem é mais forte que a linguagem em si, no caso, a poesia era só o meio. A escrita, na época, estava engajada com questões sociais, protestos, movimento Anarco-punk e poesia marginal. Esse foi um livro completamente artesanal, que eu fazia em casa com a ajuda do meu irmão e vendia em shows de rock, na universidade e em encontros de estudantes. Fractais Semióticos é um diálogo muito direto com os escritos beats, aquelas coisas de viajar e escrever sobre a estrada etc. Nesse livro, começa a existir uma preocupação com a linguagem. No período em que escrevi os poemas de Fractais Semióticos (2001 – 2002), conheci alguns poetas de Fortaleza e consolidei para mim, a ideia de ser poeta. Esse é um livro que tem poemas que vou levar para o resto da vida, pois há uma relação forte de poesia e experiência – experimentação. Insólito é algo que considero mais denso. Nesse momento, me preocupo bem mais com a linguagem e com as estratégias de criação, e o meu diálogo se torna mais próximo com o surrealismo. Insólito é um investimento poético-estético planejado. Mas em todos os meus livros, estou muito implicado nos textos, a primeira pessoa é presente – há um sujeito produzindo ações, há um envolvimento no campo das emoções. O percurso que se desenha é de uma maior compreensão do papel da linguagem, articulando intensidade e o fluxo espontâneo.

Adriano – Então, poesia e vida são indissociáveis?

Demetrios – Na minha produção, poesia e vida estão intimamente relacionadas. Procuro articular a experiência (vida) e o experimento (linguagem), a intensidade das ações e do desejo e a densidade construída na/pela linguagem. É como digo em um de meus poemas: “é preciso alimentar a loucura que carregamos na mochila”, e esse alimento é o campo do sensível a que estou inserido: são as imagens cotidianas que me atravessam, são as linguagens artísticas que consumo, é a minha companheira, são os meus gatos, os peixes, o cheiro do café – logo as questões que envolvem vida e linguagem criam um campo de comunicação e ressonâncias que resultam em uma costura íntima entre vida e poesia – poesia/viva. Interessa-me essa contaminação ente os campos, até porque são indissociáveis. Nessa primeira década dos 2000 ficou muito em evidência um modo de fazer poesia em que o sujeito e o sentimento foram retirados do texto, resultando em um artefato insípido – terrivelmente limpo, sem rugas, sem ruídos, na qual a única marca humana é a própria linguagem. Não me atrai essa poesia em que a linguagem se torna um fim em si mesmo, onde o texto poético parece mais uma charada sem resposta – hermética demais.

Adriano – Há diversas sinestesias, assim como referências musicais e até mesmo astrológicas. Como esses aspectos influenciam vida e poesia?

Demetrios – Interessante como tudo que está à nossa volta se torna material para poesia. As sinestesias que você menciona são inevitáveis em meus poemas, pois o que me atravessa e interfere na minha percepção sensorial termina ocupando um lugar no momento em que escrevo. As cores, os sabores e os cheiros são mencionados constantemente, como por exemplo: “sinto o cheiro de teus movimentos coloridos violando minhas brânquias”, ou então “tua alma de planta ornamental tem gosto azulado”. Mas as experiências sensoriais são (re)produzidas poeticamente de forma atravessada, deslocando suas correspondências originais. Com relação às referências citadas dentro dos meus textos, elas são muitas e diversas principalmente no que diz respeito à música. Sou uma pessoa que se movimenta pela música, por trilhas sonoras e, desse modo, a música e a atitude de algumas bandas e estilos musicais influenciam muito minha escrita como, por exemplo: The Doors, Velvet Underground, Radiohead, Elliot Smith, Tom Zé, Afrossambas, Nação Zumbi, percussão de terreiro e por aí vai. Escrevo na maioria das vezes, mas nem sempre, no ritmo do rock e imaginando os quadros de Chagal, as fotografias de Brassaï, as pinturas de Basquiat e automaticamente entremeando com os acontecimentos do meu cotidiano e da minha vida. Utilizo as referências da música, da pintura e do cinema para compor uma teia semântica em que uma área empresta sentido a outra e assim embaralho as coisas produzindo imagens insólitas – “como peixes cegos vagamos por cidades esquecidas e praças ensolaradas que Pollock desmantelava com seu pincel de canivetes”. Certa vez, o poeta Roberto Piva disse em uma entrevista que “uma poesia sem música, sem jogo de cintura, é uma poesia rígida”, e ele tem toda razão. Nessa dança de salão ou de terreiro é o som que mistura os elementos da alquimia do verbo.

Adriano – Como está sendo a repercussão do Insólito?

Demetrios – Ainda é cedo para avaliar, porque o lançamento ainda está recente. As ressonâncias de um livro de poemas demoram a acontecer. Penso que é no decorrer de 2012 que Insólito vai criar seus caminhos. No início de fevereiro vou fazer uns 2 lançamentos em Fortaleza e depois em Pedro II – com o tempo ele vai se espalhar e ganhar os seus leitores. Mas de todo modo, tenho ouvido coisas boas e espero que as pessoas gostem do livro.

Adriano – Você faz parte do grupo literário Academia Onírica. Como se dá esse convívio artístico em relação à sua produção literária?

Demetrios – Tem sido muito importante o exercício de trabalhar em coletivo, pois a Academia Onírica é formada por 6 pessoas que articulam os eventos e os demais trabalhos (revista, cd, zine), contudo têm mais pessoas envolvidas nesse projeto (músicos, fotógrafos, artistas plásticos, videomakers, escritores) e o legal é que o debate em torno das linguagens artísticas é bastante amplo. Essa teia que a AO vem construíndo desde janeiro de 2010 tem proporcionado para todos nós uma maior circulação e visibilidade de nossos trabalhos coletivos e individuais. Interessante que depois que formamos o grupo, todos foram mais instigados a escrever e logo a produção de aumentou, bem como o nosso diálogo ficou mais próximo, passamos a contribuir um com o outro de modo íntimo. Às vezes escrevo um poema e mostro para o Thiago E ou o Valadares e eles dão alguma ideia e as coisas seguem. O contrário também acontece. Alguns detalhes de Insólito foram pensados dentro desse contexto e até mesmo o lançamento, que aconteceu com um recital e a participação dos amigos da AO.

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Demetrios Galvão nasceu e vive na cidade de Teresina/PI. É poeta, editor e professor. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017), Reabitar (2019) e do objeto poético Capsular (2015). Em 2005 lançou o CD de poemas Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico. Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012) e da AO-Revista (2011-2012). Atualmente edita a revista Acrobata.

Adriano Lobão Aragão é autor de Os intrépidos andarilhos e outras margens (romance, 2012) e Destinerário (poemas, 2019), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

Poesia reunida, Graça Vilhena

VILHENA, Graça. Poesia reunida. Teresina: Quimera, 2018.

– Volume reunindo Em todo canto (1997) e Pedra de cantaria (2013)
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TUA

São minhas essas margens
ombros do rio em que choras
guardando teus peixes
e aflição em correnteza.

É minha a chama
que faz arder a tua imagem fina
e empluma o teu voo.

É teu esse amor que arquiteta
e compõe a nuvem em que pousas
para secar a saliva dos teus vícios.

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COISAS SIMPLES

também tive amor sem cura
que enterrei agasalhado
na bainha de um punhal

hoje quero coisas simples
sem seiva como os gravetos
que o vento não mais assusta
e se quebram sem doer

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Maria das Graças Pinheiro Gonçalves Vilhena nasceu em Teresina, em 10-02-1949. É poetisa e contista, participante da Geração Mimeógrafo ou Geração 70. Formada em Letras, pela Universidade Federal do Piauí e tem especialização em Língua Portuguesa, pela PUC-SP. Leciona Literatura e Redação, no Instituto Dom Barreto. Autora de: Passo a pássaro (poesia, 1997, com William Melo Soares); Em todo canto (poesia, 1997); O jornaleiro de gesso (contos, 2002); Pedra de cantaria (poesia, 2013).

Ô de casa!

SANTOS, Cineas (org). Ô de casa! Teresina: Editora Nossa, 1977.

Coletânea de contos, incluindo Dodô Macedo, João de Lima, João Carneiro, Paulo Machado, Cineas Santos, Magalhães da Costa, Geraldo Borges, Durvalino Couto, Arnaldo Albuquerque, João Luiz, Pedro Guerra, Will Prado, Menezes y Morais, Francisco Miguel de Moura, J. Carlos de Santana Cruz, Assaí Campelo e Rubervam Du Nascimento.

Capa: foto de de Fernando Campos e arte-final de Fábio Torres

Impressão: Comepi