Mais que imperfeito, Fred Maia

MAIA, Fred. Mais que imperfeito. Porto Alegre: Ameop, 2004.

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CIDADE

um sobrado
assombra a Consolação
emparelhado
o cemitério dorme
seus mortos sossegado
o sobrado
é morto vivo
no passado
a luz no andar de cima
olho ensimesmado
que os olhos dos que estão
aqui desse lado
fecham-se acordados

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pequeno jarro
só um traço desenhado
broto de bambu

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sol inclinado
o aquário vazio prisma
peixes imaginários

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Fred Maia é piauiense de Oeiras. Poeta, educador social e jornalista. Publicou Um rock por nada (Arte Pau Brasil/SP); eupor (Nômades/SP); Plínio Marcos – A crônica dos que não têm voz (Boitempo/SP – Ensaio biográfico, com parceria de Vinicius Pinheiro e Javier Contreras).

Mátria, Laís Romero

ROMERO, Laís. Mátria. São Paulo: Paraquedas, 2023.

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MÁTRIA

Meu corpo encontrou um ritmo
meu corpo abrigo
país dos meus filhos
meu corpo ferido frio
corpo dormindo
capataz dos meus delírios
corpo vasto território
corpo de corte e tintura
mapa em relevo da dor
meu corpo sereno
corpo, pelos e suor
meu corpo diz e asseguro
estar a caminho
no presente
e nos medos multiplicação

Meu corpo aberto e preciso
Coragem, eu insisto

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ESTUDO Nº 7

Dos teus olhos de âmbar
escapa a minha dança
e sobram outros segredos

Duros aspectos do medo
sinto meu pulso revidar
um ritmo atravessado em garganta e
ainda em dança em dança
no âmbar de nossos anseios

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Laís Romero nasceu em Teresina, PI, em 1986. Mestra em Letras pela UESPI e especialista em escrita e criação pela Unifor. Atualmente, trabalha como revisora e editora. Mátria é sua primeira publicação solo.

 

 

Refeição do tempo, Caio Negreiros

NEGREIROS, Caio. Refeição do tempo. Teresina: Avant Garde, 2021.

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maresia
não desfez os nós
restou o mar

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SÃO BENEDITO

Na melhor fatia dos anos 80, jovens se aglomeravam no adro da São Benedito, até o som estridente da sirene do colégio Cursão avisar o início das aulas.

O tempo insidioso não ousava deixar marcas. O tempo infinito dos cartazes curiosos do Rex; ou da efemeridade de uma ficha de fliperama do velho Clube dos Diários.

Mas ninguém se iluda com este senhor e suas cascas. Não há reforma que apague o açoite, ainda que em silêncio e invisível.

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Caio Negreiros é ex-atleta aposentado compulsoriamente. Estuda música com sucesso duvidoso. Poeta e Procurador do Município de Teresina. É autor dos livros: A decadência das horas, Portal do Hades e Sobras do dia (Edições Não-Ser).

A inconstância dos fluxos, Demetrios Galvão

GALVÃO, Demetrios. A inconstância dos fluxos. São Paulo: Editora Primata, 2023.

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A INCONSTÂNCIA DOS FLUXOS

uma porção de vida felina
dorme em minhas mãos
observo a força vibrar
no corpo de 200 gramas

por um instante, penso
na poeira cósmica que nos cobre
do nascer do mundo ao algoritmo
uma inteligência artificial
que planeja o nosso futuro

esse lapso que dura
uma eternidade de incertezas
oferece margens difíceis de saber
onde pôr os pés
qual melhor forma de plantar?
para qual deus dar atenção?

agora mesmo
uma performance pandêmica
sincroniza a atenção dos espectadores

no seu espetáculo mortífero
transforma nomes de família
em vazio numérico

em algum lugar do país
uma pessoa precisa encher os pulmões de ar
mas a atendente diz que está em falta
explica que é uma espécie de castigo
por maltratarem o planeta

volto para a pequena porção de vida
em minhas mãos
contemplo sua saúde
pelo rastro que deixa
pela vontade de comer de hora em hora

uma infância se prepara para a inconstância dos fluxos.

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O MUNDO FEITO COM AS MÃOS

no universo antropomágico
do mundo feito com as mãos
existem seres bonitos em sua simplicidade
uns visíveis e outros invisíveis
essa comunhão que frutifica
uma espiritualidade suava

de mãos dadas com a mística do mundo
o ciclo cósmico renova ruínas
e a força transformadora
produz alimentos
molda idades abstratas
reluz palavras na escuridão

a humanidade come na mão da natureza

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Demetrios Galvão (Teresina, PI, 1979) é professor, poeta e editor. Autor dos livros de poemas Fractais semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O avesso da lâmpada (2017), Reabitar (2019) e do objeto poético Capsular (2015). Tem poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias. É coeditor da revista Acrobata, em atividade desde 2013. www.revistaacrobata.com.br

Big sentido, Durvalino Couto Filho

COUTO FILHO, Durvalino. Big sentido. Teresina: Navilouca Produções, 2022.
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BIG SENTIDO

A saber: os sentidos somam cinco
Para nos dar essencial atenção
Olfato paladar tato e visão
Mais a audição:
É tudo que sinto

Mas sei que há o sentido poético
Um sentido com frequência e altura
Senso que faz da palavra figura
Como diz Décio sendo um tanto hermético
Esse sentido que mexe comigo

Misterioso e torpe em sua essência
Modo de dizer um tanto ambíguo
Mas que persiste em sua permanência
Um Big Sentido se fez meu amigo
Aquele que relativiza minha existência

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DEPOIS

fomos
desfeitos
um para o outro

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Durvalino Couto Filho nasceu em Teresina, a 20 de outubro de 1953. Trabalhou em vários jornais alternativos com colegas de geração, destacando-se o jornal Gramma. Atuou como letrista e baterista na música piauiense, com inúmeras parcerias na cena musical. Trabalha com publicidade e já atuou também como ator. Lançou seu primeiro livro de poemas, Os caçadores de prosódias, em 1994.

Loucuras sóbrias, Paulo Tabatinga

TABATINGA, Paulo. Loucuras sóbrias. Teresina: Editoração Caseira, 2023.
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ROMÂNTICO

de tão romântico
ele sentida saudade
da saudade dos outros

EPITÁFIO

vocês pensam que eu morri!

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Paulo Tabatinga é piauiense de Teresina. Publicou Sentimentos, Somente para bêbados, A cidade sitiada, A cidade vigiada e A cidade distópica. Tem poemas publicados nas redes  sociais e participou de várias exposições fotográficas em Teresina.

 

Na caverna de Platão, J.L. Rocha do Nascimento

NASCIMENTO, J.L. Rocha do. Na caverna de Platão e outros contos breves. Guaratinguetá: Penalux, 2023.
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TÁRTARO

– No portal do inferno, Hades organiza a fila:
– Genocida?
– Falando comigo?
– Sim. Você não é aquele que disse?
– Sim, sou seu mesmo.
– Certo, os dados conferem.
– O que houve com o seu rosto?
– Excesso de exposição ao…
– Poupe-me dos detalhes, sei do que se trata.
– Qual a fila?
– Primeira à direita. Em seguida, siga em frente. No final você encontrará Caronte, que o aguarda na margem do rio. E não esqueça: as três moedas não podem ser falsas.

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João Luiz Rocha do Nascimento (Oeiras, PI, 1959) é escritor, professor e magistrado. Mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos-RS. Autor, dentre outros, de Os pés descalços de Ava Gardner (contos, 2020) e Na caverna de Platão (contos, 2023)

AO revista

Revista literária editada pela Academia Onírica [Demetrios Galvão, Fagão, Laís Romero, Kilito Trindade, Thiago E e Valadares]. ISSN 2236653-9. AO revista 1 foi publicada em Teresina, em junho de 2011, contando com textos dos Oníricos, de colaboradores e convidados.

Jorge Mautner | entrevista e panfletos do kaos |
Roberto Piva | poema inédito |
Nicolas Behr | poemas |
Rubervam Du Nascimento | poema |
Carlos Emílio C. Lima | conto |
Durvalino Filho | poema |
Daniel Ferreira | conto |
Ranieri Ribas | poema |
Renata Flávia | poema |
Adriano Lobão Aragão | poemas |

| artigo sobre fanzine |

Elio Ferreira | poema |
Mardônio França e Katiusha de Moraes | poemas |
Francisco Denis Melo | contos  |

Joniel Veras | capa e artes plásticas |
Zorbba Igreja | projeto gráfico e diagramação |

Conselho editorial | Laís Romero, Demetrios Galvão, Kilito Trindade e Thiago E |


AO revista 2 foi publicada em dezembro de 2011 e lançada sexta-feira 13 de janeiro de 2012. Além dos trabalhos internos dos integrantes da Academia Onírica, contou com as seguintes colaborações:

Augusto de Campos | poesia e traduções |
Arnaldo Antunes | poemas |
Cláudio Willer | entrevista e poemas inéditos |
Jomard Muniz de Britto | atentados poéticos |
Estrela Leminski | poemas |
Solda | poema-cartum |

Movimento Literário Kuphaluxa
| grupo de jovens poetas africanos – de Moçambique |

Coletivo Diagonal | artigo sobre vídeo |
Paulo Machado | conto e poema-homenagem |
Amaral | texto-pós-leitura de insólito |
Airton Sampaio | conto |
Marleide Lins e Ksnirbaks | poemas |
Daniel Ferreira | conto |
Eduardo Jorge e Nuno Gonçalves | poemas |
Chacal Pedreira | poemas |, Ayla Andrade | conto |

Gabriel Archanjo | capa e artes plásticas |
Polyanna Galli | diagramação e projeto gráfico |

 

Grão, de Rogério Newton

Entrevista com Rogério Newton concedida a Adriano Lobão Aragão, em janeiro de 2012 e publicada originalmente na coluna Toda Palavra, jornal Diário do Povo

O cronista e poeta Rogério Newton, nascido em Oeiras e radicado em Teresina, autor de Ruínas da Memória (crônicas, 1994), Pescadores da Tribo (crônicas, 2001), Último Round (poesia, 2004) e Conversa escrita n’Água (crônicas, 2006), lançou recentemente Grão, seu novo livro de crônicas. A crônica puxou a conversa e a conversa segue adiante.

Por que Grão?

Fiz como nos livros anteriores: peguei uma das crônicas e dei título ao livro. Aprendi isso com os contistas da década de 70. Grão é um nome curtinho, sugestivo, tem um quê minimalista. Isso me agrada, pois ajuda a tornar o texto enxuto. E se a palavra é curta e polissêmica, melhor ainda.  Na verdade, é uma microcrônica. Levá-la para o título do livro é uma forma de me render à concisão.

Quase todos os textos do livro são voltados para o cotidiano, para uma realidade imediata. Entretanto, o texto Grão é justamente o que mais difere dos outros, seja por sua extensão mais reduzida, por sua temática e até mesmo o estilo, que se aproxima bastante do conto minimalista contemporâneo. Como você avalia esse aspecto?

Você tem razão ao aproximá-la do conto minimalista, e acho que isso atesta uma das possibilidades do gênero, que nem sempre fica adstrito ao que comumente se entende por crônica. Agora, a temática não deixa de ser ecológica (e nesse ponto essa crônica não difere de outras do livro), só que de uma perspectiva cósmica, isto é, a Terra vista do espaço, pequenina como um grão de milho. Acho que você captou bem o espírito da coisa: o vínculo direto que a crônica tem com o cotidiano não deve ser uma fronteira intransponível. Mas aí podemos indagar: qual o significado de “cotidiano”? É somente o circunstancial? A Terra completa seu giro todos os dias, dentro do oceano cósmico. Isso não é um fato cotidiano? 

Como está sendo a repercussão do livro?

A melhor repercussão que o livro poderia ter seria sua venda em livrarias e sua recepção pelo leitor e pela crítica. Que eu saiba, só há um livreiro em Teresina que tem apreço pelo autor local: é o Leonardo Dias.  Por isso, só deixei o livro na livraria dele. Entreguei também alguns exemplares ao Espaço Cultural São Francisco, no Mafuá, onde fiz um dos lançamentos. Mas confesso: não sei como distribuí-lo. Bom seria se tivéssemos um profissional que pudesse fazer esse trabalho. Como não conheço nenhum, uso o tradicional sistema amador, levando a obra aos lugares aonde vou. Gosto muito do contato direto com o leitor, de conversar com ele, saber o que ele pensa. Tenho recebido manifestações de pessoas que já me conhecem como cronista. Alguns escritores e leitores sinceros gostam do que escrevo e fazem questão de dizer para mim. Isso me alimenta. O feedback é vital para o escritor.

Como você avalia o atual panorama literário praticado no Piauí?

Alguns pontos de partida podem ser úteis para essa avaliação: o que se produz literariamente aqui? Como o escritor e o livro são recepcionados pela sociedade? Que instrumentos o Estado e a sociedade possuem para favorecer a criação literária, a editoração de livros e o acesso à cultura? Há o exercício de uma crítica militante? Falo de Teresina, pois desconheço a realidade nas outras cidades. Não sei exatamente quantos livros e revistas foram publicados em 2011, mas talvez tenham sido suficientes para não haver uma estagnação, como a do teatro, que vive uma situação preocupante. Duas editoras, a Nova Aliança e a Renoir, têm publicado – poucos títulos, é verdade -, mas o fato de existirem simultaneamente é algo inédito em Teresina. Acho positiva a ocorrência periódica do Salão do Livro, com todas as carências que possa ter. O surgimento da revista da Academia Onírica é um sopro de vitalidade. A continuidade da Desenredos é também um exemplo de vitalidade e rigor, que considero indispensáveis. O fato de Assis Brasil estar residindo entre nós, participando ativamente da vida literária, é um alento auspicioso. Além de grande escritor, é um exemplo de longevidade criativa que todos nós devemos celebrar. Em relação à participação do Estado, considero-a praticamente nula, e nesse ponto acho que há um retrocesso que já dura uma ou duas décadas. Tenho muita vontade de saber como se dá o ensino de literatura nas escolas, as abordagens usadas e principalmente as consequências desse ensino. Sobre uma crítica militante, acho que nunca a tivemos. Suplementos literários de jornais poderiam ser veículos para expressão da crítica especializada, mas não os há entre nós. O crítico também deveria ser um profissional remunerado para exercer seu trabalho.

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