Elio Ferreira de Souza nasceu em Floriano, Piauí, em 14 de maio de 1955.
Doutor em Letras e Pós-Doutor em Estudos Literários. Professor no Mestrado e na Graduação em Letras da Universidade Estadual do Piauí. Corda Azul do ABADA Capoeira.
Publicou os livros de poesia: Canto sem viola, 1983; Poemas de Nordeste, 1983; Poemartelos, o ciclo do ferro, 1986; O contra-lei, 1994; O contralei & outros poemas, 1997; América-negra, 2004; América negra & outros poemas afro-brasileiros, 2014.
Publicou poemas em várias antologias poéticas como Cadernos Negros 27, 29, 31, 33 e 43 (2004, 2006, 2008, 2010 e 2020); Estas flores de lascivo arabesco (2008); Baião de todos (2016) e Antologia Poética Brasil-Moçambique (2023).
Entre seus livros autorais de ensaio, destacam-se Poesia negra: Solano Trindade e Langston Hughes (2017) e Identidade e Solidariedade na Literatura do negro brasileiro: de Padre Antônio Vieira a Luiz Gama (2005). Organizou mais de uma dezena de livros de ensaios sobre literatura e cultura afrodescendente. Editou a revista Roda de Poesia & Tambores, números 1 e 2, 2010/2011.
Autor e curador do projeto Roda de Poesia & Tambores, Teresina, 2000 a 2011. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro – NEPA/UESPI. Coordenador do ÁFRICA BRASIL – Encontro Internacional de Literaturas, História e Culturas Afro-Brasileiras e Africanas (edições V, IV, III, II e I). Editor e organizador da Coleção ÁFRICA BRASIL, NEPA/UESPI.
Sua última obra publicada foi direcionada ao público infantil e juvenil: A rolinha e a raposa (2022).
No dia 11 de abril de 2024, Elio partiu para o mundo dos ancestrais.
Literatura Negra das Américas: a poética de Elio Ferreira
A Literatura Negra das Américas, seus autores e suas obras constituem um campo diverso. Eu, porém, não poderia iniciar esse texto sem antes levantar algumas questões que
considero fundamentais para a compreensão do que será apresentado aqui: inicialmente,
o que é a Literatura Negra? O que faz com que um texto seja classificado como Literatura
Negra? Quais os elementos textuais nos permitem conhecer uma obra como sendo
Literatura Negra? E por fim, os elementos externos ao texto têm relevância na definição
dessa arte? E mais, o que seria a Literatura Negra das América?
Ainda que eu não tenha nenhuma pretensão de esgotar as diversas questões
levantadas a partir do surgimento da Literatura Negra no Brasil, que nos remete ao século
XVIII, com Domingos Caldas Barbosa, devemos ressaltar que seu conceito já pode ser
rastreado no final da primeira metade do século XX.
Outro dado importante a ser apontado é que o conceito de Literatura Negra surgiu
nas academias através de estudos de pesquisadores estrangeiros, como Roger Bastide, em
1943, e sua tão falada Poesia afro-brasileira.
Para além do tempo, das pesquisas e dos pesquisadores, uma das consequências
mais imediatas desse incômodo dado é que, na busca pela definição de uma literatura
pertencente ao segmento negro brasileiro, a academia deixou de escutar, justamente,
aqueles que são os principais atores dessa arte: os escritores e as escritoras negras. Essa
prepotência e arrogância dos estudos acadêmicos brasileiros podem estar relacionadas aos
seus fundamentos epistemológicos ou, ao menos, acreditamos que uma grande parte dos
que fazem a academia prefiram se ligar às matrizes genéticas europeias ou, no mínimo,
assumam máscaras e comportamento brancos.
Na contramão disso tudo ou, para utilizar os versos metafóricos de Elio Ferreira,
na contra-lei dessa patologia da academia e de seus intelectuais fabricados nos fornos do
Ocidente, o Movimento Negro Brasileiro, já há tempos, vem afirmando uma arte literária
relativa ao sujeito negro. Tal arte tem no próprio negro, na sua pele, no seu corpo e nas
suas experiências e nas de seus ancestrais os principais fundamentos que a constitui. Logo, a Literatura Negra é aquela tecida pelo autor e pela autora negra. O autor
ou a autora precisa ser negro e, mais, precisa se afirmar como negro dentro do texto. Esse
comportamento discursivo revela-se como um constituinte textual. Ainda que o valor do
texto não esteja diretamente ligado a esse aspecto, a concepção de Literatura Negra
estabelece que o autor e a autora se reconheçam como negros. Vejamos os versos de Elio
Ferreira e como a voz poética reclama para si essa condição:
Brasil, eu sou negro – graças a Deus.
Não pense em me enganar a vida inteira.
Além do mais, é preciso que o autor ou a autora fale das histórias que envolveram
e que envolvem o negro na sociedade brasileira e nas Américas, revelando o valor da
cultura africana no Brasil. O africano negro, submetido ao tráfico, à travessia, à
escravização viveu as maiores atrocidades e desgraças nas Américas. Como afirma
Achille Mbembe, (2018), a transformação do negro em homem-coisa, homem-máquina,
homem-código e homem-fluxo precisou de um mercado. Tal mercado não se restringiu ao
Brasil, mas às Américas. Por isso, as experiências negras estão nas Américas. De fato, a
América é negra. Ouçam a voz do poeta Elio Ferreira:
Américas,
eu sou negro, negro
cor da noite escura, negro
como as noites sem luar do sertão.
Américas,
vou lhes contar minha história:
defendi minha casa,
meu clã,
minha aldeia,
minha tribo
meu reino,
minhas fronteiras, como pude.
A poesia de Elio Ferreira reconstrói os episódios, as passagens, as histórias, as
memórias e as experiências do corpo negro nas Américas. Os versos do poema assumem
um lado da história, não dos colonizadores e conquistadores, mas dos humilhados, dos
coisificados, dos escravizados. Além disso, é possível verificar como os negros resistiram
bravamente à invasão e ao assalto de suas terras, contrapondo-se às imagens patéticas do
Pai João, cujas noções emolduraram o imaginário coletivo em torno do negro passivo,
bestializado e bocotizado.
A Literatura Negra das Américas fala não só das desgraças impostas ao corpo
negro pelo explorador branco europeu e suas consequências para milhões de descendentes
no Novo Mundo, mas também e, sobretudo, das riquezas que o corpo negro representa.
O que nós classificamos de Pensamento Negro constitui um conjunto diverso e
enriquecedor para os povos do mundo. A literatura é um desses legados.
Não por acaso, o autor e a autora negra fazem da linguagem literária um campo
de expressão e de vivência das suas próprias experiências e dos seus antepassados. Para
isso se concretizar e se materializar, o trabalho com a palavra é constante, duro, árduo,
mas necessário. Vejamos os versos de Elio Ferreira:
Poesia, poesia,
tenho te perseguido como um
lobo faminto
persegue sua presa.
Fiz tudo por ti e por mim.
O que podia e o que não podia,
e não me arrependo.
Você me deu certos sentimentos
e virtudes,
você me faz pensar como se eu
fosse
Deus
Do trabalho constante com a palavra, na busca pela conquista da arte e pela
inclusão dos sentidos que o escritor negro quer expressar, nascem os experimentos linguísticos, os jogos com as palavras e a invenção de uma arte negra. Os encontros
consonantais, as brincadeiras linguísticas e os sons vocais formam uma espiral poética,
cujas imagens sugerem o corpo negro em movimento. É o que pode ser extraído de
Abracadabra:
Abracadabra
Abracadabra
Bit BIT digitando bit
Em Blues cibernético II, o poeta vai além, fazendo das palavras um movimento
circular ou espiralado, como se nos dissesse que a cultura negra é uma roda de poesia e
tambores. Os teclados do computador desempenham o papel de tropo linguístico,
simbolizando o pensamento do poeta negro diante da máquina morta de sentimento. A tecnologia pode computar tudo, menos os sentimentos do negro.
Meu amor,
um computador
não computa a minha dor.
Bit bit bit bit bibit digitando bit.
Para além do trabalho com as letras, palavras, versos e estrofes, há uma busca
sonora da linguagem. A sonoridade da poesia de Elio Ferreira, ou mesmo, da sua obra,
está intimamente relacionada às suas experiências com as camadas sociais desfavorecidas
da sociedade brasileira. Em sua compreensão de poeta e de intelectual, há o desejo
profundo de aproximar poeta e povo. Isto é, o poeta faz de sua arte um instrumento de
encontro de experiências e de troca de saberes. Desse entendimento, surge uma poética
repleta de falares populares, de imagens risonhas, de situações sociais, donde as
metáforas, assonâncias, aliterações e anáforas criam uma atmosfera crítica da condição
social do povo negro, estabelecendo uma outra forma de relações entre o negro e a linguagem.
Você quer me ver lama, na lama
Ganglu lama ganglu lama,
TIBUNGO na lama.
Os tropos literários envolvem o poeta negro num quadro imagético sugestivo, no qual o Continente africano é invocado e simbolizado por meio de metáforas alegóricas,
donde os mitos de criação, os rituais de passagens, os cantos de iniciação, as lendas, os cantos ritualísticos organizam, constituem e dão sentidos às manifestações culturais africanas. Essa busca pelo contar a história a partir do próprio negro faz nascer uma
literatura reelaborada, na qual os negros se tornam pessoas humanizadas. É o que se verifica em África-mãe:
África-Mãe do primeiro amor,
África-Mãe do primeiro Deus,
África-Mãe da primeira mulher,
África-Mãe do primeiro homem,
África-Mãe de todos os povos,
África-Mãe da raça humana.
Elio Ferreira é um poeta contador de histórias. O que ele faz, através de sua poesia, é contar histórias. Histórias que ouviu, presenciou, viveu e partilhou ao longo da vida.
Ele é um amante e um apaixonado pela literatura e, sobretudo, pela cultura negra. Se a poesia lhe deu tudo, isso só foi possível graças à crença profunda que alimentava em torno da riqueza da cultura negra, em particular, a de matriz africana. A veia popular e oral de sua obra está intimamente relacionada às suas origens familiares, afro-indígenas que são. O poeta Elio Ferreira se confunde com o próprio eu da poesia e, até mesmo, com a própria
poesia. Essa percepção de arte faz com que a literatura se redimensione, incorporando o corpo, a alma e a vida do negro na poesia. O corpo negro passa a ser a própria poesia. Vejamos os versos de POESIA, POESIA:
Poesia, poesia.
O meu corpo,
A minha alma,
A minha vida,
Mesmo o tempo sendo curto, gostaria de chamar a atenção para um aspecto
importante da Literatura Negra das Américas presente na obra de Elio Ferreira. A existência e a valorização do ambiente familiar e tudo aquilo que o representa e o constitui. É o caso do poema O ferreiro e o martelo, no qual o poeta negro invoca as imagens da casa paterna, com as presenças do pai, as tarefas, o trabalho na oficina, a
labuta diária e suas obrigações. Tudo isso forma uma imagem afetiva, saudosista e sentimental do ambiente familiar:
O meu pai é ferreiro,
ele acorda de manhã,
bem cedinho,
na hora dos passarinhos,
o martelo TEM TEM TEM!
Sem falar nas brincadeiras de crianças, suas danações e estripulias. O menino
perambulando e correndo pelas ruas da cidade natal, correndo atrás de pipas, vendo os passarinhos nas copas das figueiras, vendo o bumba-meu-boi passar e a multidão acompanhando. Numa linguagem simples, leve e singela, o poeta nos toca, profundamente, envolvendo-nos de emoção e criando uma atmosfera sentimental pouco vista na literatura atual. É o que sentimos ao ler o poema Né Preto:
Seu Né Preto
espere por mim
com banhos de alecrim
com histórias de Trancoso
com cantigas de passarinhos
com sete gerações bumba-meu-boi
no terreiro:
não era gente debaixo não
era boi mesmo
e cheio de artimanhas.
Já encaminhando-me para o final, é indiscutível a existência da Literatura Negra no Brasil e nas Américas. Ainda que se questione sua nomeação, bem como uma nomenclatura para ela, não podemos deixar de reconhecer sua importância e seu valor para a história do negro. A Literatura Negra desempenha papel fundamental na construção da identidade do negro, além de ser uma arte vinda do próprio negro, atuando, sobretudo, como elemento incentivador da cultura negra e de matriz africana no Brasil e nas Américas. Tem destaque significativo para o reconhecimento da cultura popular e oral, estabelecendo novas compreensões acerca dos povos negros nas Américas. É dessa
compreensão que o escritor Elio Ferreira surge como sendo uma das vozes mais proeminentes da Literatura Negra no Brasil e nas Américas. Certamente, Elio Ferreira seja, hoje, o maior escritor negro das Américas.