2013 e a literatura no Piauí

Adriano Lobão Aragão

Um balanço dos acontecimentos literários de 2013 no Piauí, ou em qualquer outro lugar, é uma tarefa árdua e inquietante. Qualquer esforço nesse sentido será sempre um esboço, pois o risco de omitir lançamentos e eventos é constante, por conta das limitações de informação e da perspectiva pessoal. Em outras palavras, nenhum mapeamento de atividades literárias é onisciente e a falibilidade apresenta-se, talvez, como sua marca mais forte. O interessante, porém, é que as inevitáveis lacunas e omissões sejam complementas por outros textos, de outros autores, que, em conjunto, possam dar uma melhor dimensão do que foi o ano de 2013 no âmbito da literatura nestas paragens.

Pois bem, em 2013, tivemos a continuidade dos salões de livros organizados pela Fundação Quixote, tendo o Salipi como referência. Realizado durante o mês de junho, na praça Pedro II, e apresentando M. Paulo Nunes como principal homenageado, o Salipi contou com a presença de Antonio Carlos Secchin, Evanildo Bechara, Francisco Alves Filho, Gisleno Feitosa, José de Nicola, Lúcio Asfora, Marcos Bagno, Mac Dowell Leite, Roberto Muniz, dentre vários outros. Em Parnaíba, o Salipa ocorreu no Porto das Barcas, em novembro. Homenageando Evandro Lins e Silva, o evento recebeu Affonso Romano de Sant’anna, Demetrios Galvão, Fabrício Carpinejar, Fides Angélica Ommati, José Galas Filho, Marina Colasanti, Thiago E, Zuenir Ventura, dentre outros. Em setembro, o Salipicos, homenageando Fontes Ibiapina, contou com Eneas Barros, Salgado Maranhão, Wellington Soares, Paulo Lins, Jasmine Malta, Lívia Diniz, Luiz Romero Lima, dentre outros. Entre os encontros literários mais restritos, além dos Cafés Literários promovidos mensalmente pela revista Revestrés, Teresina também contou com o tradicional Sarau do Cineas, promovido pela Oficina da Palavra, e com os saraus organizados pela Sociedade dos Poetas Por Vir.

No âmbito dos periódicos literários, a revista Desenredos prossegue suas atividades, exclusivamente no meio digital, aliando a publicação de artigos acadêmico-científicos e textos de criação artística; a revista Revestrés aposta no formato impresso voltado para o grande público interessado em arte e cultura, conquistando a cada edição uma abrangência maior. As suas instigantes entrevistas costumam ser bastante comentadas e, muitas vezes, dividem opiniões. E 2013 assinalou o surgimento de outra revista, a Acrobata, que além de literatura e artes plásticas, alia um forte interesse por cinema e outras manifestações audiovisuais, bem como uma forte tendência para o intercâmbio cultural com outros estados, sobretudo São Paulo, onde marcou presença na Balada Literária. Também em São Paulo, a editora É Realizações, prosseguindo com a publicação da obra completa do renomado crítico literário José Guilherme Merquior, lançou o volume Razão do Poema, contando com posfácio de Wanderson Lima.

Correndo o risco de cometer diversas e notórias omissões, assinalamos os lançamentos dos livros de poemas Cabeça de Sol em Cima do Trem, de Thiago E; Às Vezes, Criança, de Rubervam Du Nascimento e Sérgio Carvalho; Pedra de Cantaria, de Graça Vilhena; Poemas Insidiosos, de Caio Negreiros; Objeto Presença, de Luiz Ayrton Santos Junior; Ode ao Amor Desvanecido, de Gilvanni Amorim; O Mapa da Tribo, de Salgado Maranhão; a 2ª edição, revista e ampliada, de Sonetos e Retalhos, do poeta oeirense Gerson Nogueira Campos, falecido em 1971; e a coletânea 15 Poetas de Oeiras, organizada por Rogério Newton. Façamos também o registro do lançamento do livro-reportagem Cinturão de Fogo, de Toni Rodrigues; das ficções O Buraco e Outras Histórias, de Fernanda Paz; O Rato da Roupa de Ouro, de Dílson Lages Monteiro; No Rumo das Areias, de José Gregório da Silva Júnior; Provisório (para sempre), de Laerte Magalhães; além da 13ª edição, revista e ampliada, de Literatura Piauiense, de Luiz Romero Lima. E por falar em publicações, vale lembrar que a Fundac continua, ano após ano, devendo a edição das obras vencedoras de seus últimos concursos literários.

Por fim, mesmo em face de tantos acontecimentos e lançamentos, o ano de 2013 ficará irremediavelmente marcado pelo lamentável falecimento de O.G. Rego de Carvalho.

P

Publicado no jornal Diário do Povo, Teresina, 17 de dezembro de 2013

Adriano Lobão Aragão é poeta e professor. www.adrianolobao.com.br

Tá pronto, seu lobo?

MACHADO, Paulo. Tá pronto, seu lobo?. 2.ed. Teresina: Corisco, 2002.
– Poemas

POST CARD 57/77
à memória do artista plástico Fernando Costa

na praça marechal deodoro
às nove horas falavam
da udn e do american-can

na praça marechal deodoro
às nove horas há velhos com suas memórias
recompondo o tempo

um louco jaime fazia ponto no cruzamento
da barroso com a senador pacheco sem saber
que existia a guerra fria

no cruzamento da barroso com a senador pacheco
há um sinal que não raro
encrenca desafiando a rotina

quinta-feira era dia de matar o tempo
na praça pedro segundo enquanto os sapos
copulavam nos lajedos do tanque

quinta-feira é um dia qualquer
e na praça pedro segundo a mudança notável
é a da posição da estátua que parece sorrir

nas tertúlias do clube dos diários
uma geração embarcava no marasmo
esquecendo tudo mais

não há tertúlias no clube dos diários
as baratas medrosas saem das bocas-de-lobo
admiram os caixotes de cerveja empilhados e fogem

nos canteiros da avenida frei serafim
os cupins construíam suas casas
fiando estranha quietude

nos canteiros da avenida frei serafim
putas acenam com gestos medidos
a fome é mais forte que o medo

no bar carnaúba o sol roía o marrom
das tabículas das mesinhas
e os homens de casimira cinza faziam planos

não há bar carnaúba mas os homens
de casimira cinza continuam fazendo planos
cogitando não aceitando irreverências

na paissandu os bêbados
pregavam a subversão
e um bolero esquentava as entranhas da noite

a paissandu agoniza
os bêbados já não falam tanto
e a frieza da noite venceu o calor dos boleros

nas calçadas da simplício mendes
um rosto magro madalena deixava brotar
estranhamente um sorriso largo de espera

madalena morreu de câncer
e nas calçadas da simplício mendes
nada há que lembre sua presença

no mercado central pretas carnudas
vendiam frito de tripa de porco
fígado picado e caninha

no mercado central negrinhos descarnados
catam laranjas e limões podres
em plena manhã de maio

no cais do parnaíba piabas prata
saltavam das águas barrentas
como no sonho dos meninos

o parnaíba continua lavando as almas pagãs
dos meninos fujões
roendo as pedras do cais com a mesma fúria

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ARQUIVO
ao contista M. de Moura Filho

adão andou nas mãos dos paisanos
e foi encontrado na praça da liberdade
como um mamulengo esquecido detrás do palco:
olhos abertos, boca cerrada, músculos petrificados,
sangue coagulado nas narinas.

adão virou manchete
na pose três por quatro
na última página de o dia

hoje, é um número qualquer
arquivado
à espera dos cupins.

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Paulo Henrique Couto Machado nasceu em Teresina, Piauí, em 1956. Advogado. Defensor público. Poeta e contista. Pertence à Geração Pós-69. Participou de coletâneas e antologias. Ganhou alguns prêmios literários. Na década de setenta, fez política estudantil e editou, ao lado de companheiros de geração, o jornal mimeografado “ZERO”. Integrou o grupo responsável pela edição do jornal alternativo “Chapado do Corisco”, em 1976 e 1977, em Teresina. Publicou Tá Pronto, Seu Lobo? e A Paz do Pântano, livros de poesia. Integra a comissão editorial de literatura da revista Pulsar.

Baião de todos

Baião de todos. Teresina: Corisco, 1996.

Coletânea reunindo poemas de Alberto Araújo, Alcenor Candeira, Barros Pinho, Caio Negreiros, Carmem Gonzales, Carvalho Neto, Chico Castro, Cid Teixeira, Cineas Santos, Climério Ferreira, Diogo Fontenelle, Elias Paz e Silva, Elio Ferreira, Elmar Carvalho, Emerson Araújo, Fátima Mendes, Fernando Basto, Flávio Sousa, Francisco Miguel de Moura, Fred Maia, Glauco Luz, Graça Vilhena, Halan Kardeck, Hardi Filho, H. Dobal, Jamerson Lemos, Kenard Kruel, Lourismar, Marleide Lins, Menezes y Morais, Nelson Nunes, Paulo José Cunha, Paulo Machado, Ral, Ramsés Ramos, Rogério Newton, Rubervam Du Nascimento, Salgado Maranhão, Valadares, Victor Virgilius, William Melo Soares

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NO TROPEL DO CARROSSEL
[Diogo Fontenelle]

Os cavalinhos do carrossel,
Presos por fios de ouro,
Descem ao mar e sobem ao céu
Carregando os meninos louros
Vestidos de helenos
E os meninos morenos
Vestidos de mouros.

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[Fred Maia]

Se você
tivesse acreditado
na minha brincadeira
de dizer verdades
teria ouvido
verdades que teimo
em dizer brincando
falei muitas vezes
como o palhaço
mas nunca desacreditei
da seriedade
da plateia que sorria

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O MURO
[Hardi Filho]

A vida pinta no muro o vermelho
perigo a todo instante dia a dia
e pinta o verde, em céu azul, nuns ricos
bordados de pureza e fantasia.

Drama aventura evento a vida pinta
no muro o preto o amarelo o lilás;
refração de água e sol ela reflete
esta coisa indecisa entre ânsia e paz:

arco, armação, parábola, temores.

A morte pinta no muro outras cores.

Aporias do conceito de literatura piauiense

Wanderson Lima

“Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana” – diz-nos Antonio Candido – “há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos diferentes Estados”. No Piauí, não se foge à regra: há certas recorrências estilísticas, certas continuidades temáticas que, se não nos são exclusivas, não estão espalhadas nos quatro cantos.

Mas Candido, sempre cauteloso, não afirma que essa diferença com que a literatura se apresenta em diferentes Estados gere sistemas literários autotélicos. Pensar em estéticas nacionais e regionais é um equívoco do qual Candido não partilha; em seu sistema, à absorção de uma nova estética preside um processo dialético que conjuga questões locais aos princípios daquela estética. Assim, o romantismo brasileiro não é igual ao francês, ainda que se inspire nele; por outro lado, uma vez que se trata de um processo dialético, o fato de os autores brasileiros redimensionarem temas e padrões românticos para fazê-los falar sobre nossa realidade não indica que o romantismo brasileiro constitua uma estética nacional. Em última instância, portanto, se falarmos em literatura regional, a peculiaridade desta seria de natureza temática, jamais estética: assim, só a literatura piauiense se empenharia em ficcionalizar o que se convencionou chamar – passe a palavra! – piauiensidade, isto é, um conjunto de traços construídos coletivamente através de variadas práticas culturais, assumidas sob o rótulo de identidade cultural piauiense.

A noção de literatura regional, portanto, tem de partir da concepção da literatura como expressão do espírito de um povo ou de um local – concepção justa, mais propensas a exagerações. Adotando este ponto de vista, consideramos que na literatura piauiense está contida a “alma” do povo piauiense. A literatura aqui é espelho em que o povo se constrói e se mira; é documento dos mais valiosos, porque está nele o que um povo pensa de si.

Dentro dessa perspectiva, a literatura abre um flanco de pertencimento fundamental na constituição de uma identidade cultural. Nela mergulhamos para nos sentirmos enraizados, para sentirmos que não vogamos à toa e sem face. As obras emprenham nosso imaginário e vão engendrando narrativas que nos orientam, e mesmo nos coagem, a assumirmo-nos como filhos dessa ou daquela terra. Porém, quando se mira, obsessivamente, esta capacidade produtiva do discurso literário e fixa-se como mister deste o produzir/refletir o ethos de uma coletividade, está-se restringindo a ação dos autores (“só poderás escrever sobre tua aldeia”) e o arco de temas da literatura (“a literatura deve tratar de temas locais”). É neste ponto em que o belo espelho torna-se cárcere.

Vejamos, como exemplo, o que seria literatura piauiense segundo um crítico abalizado, Herculano de Moraes: “Literatura Piauiense é o conjunto ou acervo de obras literárias registradoras das emoções, das paisagens geofísicas, humanas e sociais, de memória e do comportamento do povo do Piauí”.

Não é preciso muito esforço para se desmontar tal conceito, já que ele contempla, basicamente, uma literatura de cunho regionalista. Seguindo-o à risca, Elio Ferreira deixaria de pertencer à literatura piauiense no momento em que escreve um poema sobre o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará: tornar-se-ia um autor da literatura… paraense. O próprio Herculano Moraes põe em crise aquele conceito ao inserir em seu escopo Mário Faustino (p. 133-138, tomo II). Mas teria o crítico outra saída? Deixaria de fora de sua Visão Histórica da Literatura Piauiense Faustino e os demais escritores que não exploram temas locais nem se valem de vocábulos regionais? Tomaria mesquinhamente como um critério basilar o local de nascimento do autor e, dessa forma, excluiria de seu livro, entre outros, Hardi Filho e Rubervam Du Nascimento?

A aporia em que Moraes se imiscui – de forma alguma um privilégio privado – é sintomática. Quando nos aproximamos da noção de literatura regional – e mesmo de literatura nacional – bordejamos perigosamente essa via. O patriotismo, disse Octavio Paz, não é apenas uma aberração moral – é também uma falácia estética. Quando digo literatura piauiense trago para o campo artístico uma noção geopolítica e histórica. O problema é que é impensável conter um grande autor nas  bordas de uma literatura regional. Mário Faustino tem mais que ver com o inglês Dylan Thomas do que com Da Costa e Silva. Assis Brasil tem mais afinidade com o americano William Faulkner do que com Fontes Ibiapina. H. Dobal se afina mais com o irlandês W. B. Yates do que com Martins Napoleão. O.G. Rego deve mais o seu talento a certa tendência da romancística francesa – Sthendal, Flaubert, Proust – do que a um Abdias Neves. Os exemplos poderiam se multiplicar ad naseum como comprovação de que é redutor ler autores exclusivamente pela pauta da noção de literatura regional. A narrativa das continuidades que as histórias da literatura de diversos Estados forjam estão fadadas à incompletude ao  fracasso, pois o “espaço” literário não coincide com o espaço geográfico. Uma prova cabal disso é o modo radical como Allan Poe mudou os caminhos da poesia francesa.

Não nos enganemos, porém: esse  reducionismo que está no bojo da noção de literatura regional é demasiado evidente para deixar de ser reconhecido. Mas por que, mesmo apesar disso, continua a se falar sobre literatura regional? Eis uma pergunta  complexa a que, neste espaço, só posso dar respostas provisórias.

Três motivos podem servir de resposta à indagação. Primeiramente, a necessidade de produzir zonas de pertencimento, isto é, de forjar identidades. Nesta perspectiva, a literatura piauiense responde à necessidade de se produzir uma identidade cultural piauiense. Em segundo lugar, as literaturas regionais resultam da experiência da margem, e nesta pauta são uma resposta ao sentimento de marginalidade cultural a que certos Estados brasileiros são relegados. Mesmo que se fale em literatura paulista, carioca ou mineira nunca estas noções serão estratégicas como o são literatura piauiense, maranhense ou cearense, pois Minas, Rio e São Paulo não ocupam a margem cultural no que concerne ao discurso literário. Em terceiro lugar, como nos ensina Foucault, quando se cria uma nova área de saber e instituições para abrigar este saber cria-se, também, um campo de poder; assim, a instituicionalização da literatura piauiense, promovida principalmente pela Academia Piauiense de Letras, permitiu (e permite) à elite cultural piauiense (dentro e fora da Academia) ocupar um espaço social privilegiado e influente na sociedade piauiense.

Resulta desta terceira resposta as implicações extraliterárias do conceito de literatura piauiense. Usar este conceito traz implicações políticas porque, a partir dele, se valida as regras de um campo de produção cultural cujo desenvolvimento depende do insulamento cultural (literário) do Estado. A quem, porém, interessa este insulamento?

P

Wanderson Lima é professor e escritor