Onde estão meus girassóis?, Carvalho Filho

CARVALHO FILHO. Onde estão meus girassóis? Parnaíba: Tremenbé, 2022.

MANUSCRITO ENCONTRADO NUM CORAÇÃO

Que páginas escuras!
São venenos em folha,
Feiticeiras astutas
Nas quais acho prazer.

Há dores
Pungentes
Em gentes
E flores

Que versos mais estranhos!
Não consigo entendê-los.
Para mim são baús
Onde encontro caveiras.

Há lábios
E seios
Enleios
De sábios

Que malignas forças!
Pouco a pouco a moleza
Domina meu caráter,
Transformando-me em vaso.

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VIDA DE FRAGMENTO

Matei meus sonhos no domingo,
Segunda-feira achei trabalho.

Terça-feira assinei tratados
Sobre a tristeza do mercado.

Gente vendendo o que não tem:
Carinho, respostas e paz.

Quarta-feira resolvi cálculos
Que me perseguem desde sexta.

Sexta-feira pareço lúcido.
Brinco com os outros fragmentos.

Sábado enxugo o mundo inteiro,
E sinceramente, lamento.

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Francisco das Chagas Souza Carvalho Filho nasceu em 1988, em Parnaíba, PI. Foi colaborador do jornal O Piauí Culturalista (2009-2021) e atualemnte é colunista na revista Piauí Poético.

Entrevista com Halan Silva

Entrevista concedida a Adriano Lobão Aragão, em 2012.

Lançado durante o Salão do Livro do Piauí, Salipi, 2011, Cambacica é mais nova criação de Halan Silva. Uma novela ambientada na Teresina dos dias atuais, repleta de referências intertextuais. Nascido em Campo Maior, em 1970, graduado em Filosofia (UFPI) e Direito (UESPI), mestre em Educação e Estudos Culturais (ULBRA- RS), Halan Kardeck Ferreira Silva publicou 16 poemas (Edições DesLivres, 1995), As formas incompletas: apontamentos para uma biografia (Oficina da Palavra/Instituto Dom Barreto, 2005), Representação e identidade cultural do vaqueiro no cinema novo (Nova Aliança, 2010) e, agora, Cambacica (Nova Aliança, 2012), mote para a conversa que se segue.

Adriano Lobão Aragão – Poesia, biografia, ensaio e, agora, novela. A que se deve essa diversificação em sua obra?

Halan Silva Não sei bem o motivo da diversidade de minha escritura. Sinto vontade de fazer e faço (dentro de minhas limitações). Ultimamente estou escrevendo um romance ambientado em minha terra, Campo Maior, não sei se vou conseguir… No início, escrevia poesia, mas creio que a poesia é o “gênero” literário mais elevado que há, não é à toa tanta verselhada por aí. A minha percepção estética me obriga a destruir noventa por cento de minha produção. Veja que se meter pelos caminhos estreitos da estética só pode ser um ato de loucura. Ernesto Sábato largou tudo pela literatura, passou  até por dificuldades financeiras, porém escreveu El tuneo. Não sei o que me prende à literatura, apenas sinto um prazer que não encontro noutros lugares: na religião, no dinheiro ou na política. De outro lado, entendo que aquele que  escreve quer se comunicar com o mundo, ainda que escrever seja um ato de solidão, mas de uma solidão que não é sinônimo de isolamento ou amargura. Enquanto estiver vivo, vou lendo e escrevendo, pois é impossível ser escritor sem antes ser um leitor.

Adriano – E seu livro Cambacica, como se originou?

Halan Depois de ler A hora da estrela, de Clarice Lispector, desta vez numa edição especial,  resolvi escrever uma novela de ficção ambientada em Teresina, isso durante os dez primeiros anos do século vinte e um. Tudo partiu da epígrafe do Livro: “Pergunta: toda história que já se contou no mundo é uma história de aflições?”. Então, eu resolvi  contar, não exatamente uma história, mas os fragmentos de uma história de amor aflito. Através desses fragmentos eu mostro Teresina no meio de um processo de transição de uma cidade pequena para uma cidade grande: De um lado, mostro os preconceitos de uma aristocracia atrasada; de outro, mostro o processo de urbanização que vai mudando a significativamente a paisagem natural e cultural de Teresina. Outro dia alguém me falou que eu deixei muita coisa de fora. Isso é a mais pura verdade, deixei. É que não pretendia fazer um inventário minucioso da cidade. A ideia era mostrar pontos de vista que poderiam ser reconhecidos pelas pessoas da cidade. O Salgado Maranhão me falou que Cambacica era uma novela infanto-juvenil e provinciana, mas não creio que seja isso não. Curioso! O Caio Douglas achou que eu escrevia à moda antiga, como ele disse parecido com o estilo de Machado de Assis, essas coisas… Embora Cabacica possa parecer sintético, eu digo que ele não é, pois deixei lacunas a fim de tornar o leitor participativo na narrativa. É impressionante como no Brasil ainda se mede um bom livro pelo número de páginas. Quando o O. G. Rego de Carvalho escreveu Ulisses entre o amor e a morte, recebeu todas as críticas possíveis – infundadas a maior parte delas, é certo hoje. Disseram que Ulisses era autobiografia (e que não é confissão na existência de um homem?), que ele não sabia escrever, que ele não tinha mais assunto, o diabo. Para mostrar que sabia escrever, o O. G. fez  Somos todos inocentes e recebeu o prêmio Coelho Neto da ABL. Durante muito tempo ele não divulgou essa premiação (ele me falou do prêmio nos anos oitenta e me pediu que guardasse sigilo).

Adriano – O.G. Rego de Carvalho foi uma grande influência?

Halan O O. G Rego de Carvalho é um belo cidadão (há um humorista que fica fazendo graça imitando o caminhado do O. G. Rego de Carvalho. Não vejo graça nenhuma, ele devia respeitar o O. G. Rego de Carvalho, pois se ele tem aquele aspecto é por conta da enfermidade). Na juventude, ele foi muito aguerrido e atuante na cidade, mas veio a doença e dele fez o que bem quis. Ele é uma influência para todos nós que gostamos de boa literatura. O jantar, que é o primeiro capítulo de Cambacica, é uma homenagem ao O.G Rego de Carvalho. O Gilvani Amorim entendeu tudo. Ele disse: “o primeiro capítulo parece do O. G. Rego de Carvalho”. No capítulo Nossa Senhora do Rosário faço um intertexto com ele, lembra que em Somos todos inocentes há uma passagem em que o personagem Raul está jogando damas? pois é, fi-lo jogar com o Dr. Ferraz… Também faço um intertexto com Assis Brasil, mais precisamente com Beira Rio Beira Vida. Dou um desfecho que ele, deliberadamente, deixou para o leitor fazer, ou seja, o destino de Luiza e Mundoca. Alguns capítulos fazem referências a outros autores: Graciliano Ramos, Miguel Torga, Machado de Assis, Manuel Bandeira.

Adriano – Promover, divulgar um livro é uma tarefa tão árdua quanto escrevê-lo?

Halan Divulgar um livro é sempre doloroso, no Piauí o doloroso vai para o superlativo. Você publica um livro e simplesmente nada acontece. O O. G Rego de Carvalho teve a sorte de receber uma série de críticas negativas no jornal O Piahuy. Tivesse ele escrito hoje, não teria espaço nos jornais de Teresina, que destina boa parte de suas páginas à coluna social (aquelas notinhas de elogio fácil). Não existe mais no país o jornalismo literário e as universidades, as públicas mormente, só produzem dissertações e teses (produzem bem), as revistas de circulação nacional fazem indicações comerciais de livros de grandes editoras. As escolas do Piauí, por hábito de consumir somente o que vem de fora, simplesmente ignoram a produção local. O governo e os municípios também ignoram a produção local. Não adianta só publicar, é preciso que haja circulação das publicações para fomentar o mercado editorial local. Os intelectuais do Piauí são, na maioria, os que leram e não lêem mais, não falam nada porque não leram absolutamente nada do que vem sendo publicado. Tudo me parece paradoxal, pois na era da informação e da tecnologia, que facilita a editoração, estamos cegos pelo excesso de luz  e aturdidos ante tantas publicações, que loucura! O professor Cineas Santos disse que no Piauí há mais escritores do que leitores e isso, ao que me parece, compromete a circulação do livro. Veja que no Rio Grande do Sul a coisa é bem diferente. Os escritores gaúchos não precisaram sair de lá para acontecer: Mário Quintana, Dionélio Machado, Josué Guimarães, Érico Veríssimo e Luís Fernando Veríssimo, enfim. As escolas públicas e privadas o adotam e eles são valorizados. O Leonardo Dias, depois que o Cineas deixou de editar, vem se arriscando por essas águas, mas o risco de afogamento é alto. Não pensem que sou pessimista, o Cineas disse-me que ninguém iria ler meu livro, que tudo ia dar em nada. O livro Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco, passou cem anos no limbo e ressurgiu das cinzas (e foi muito bom). Franz Kafka teve quarenta leitores, Konstatinos Kavafis teve meia dúzia, Fernando Pessoa, em vida, só editou Mensagem e a repercussão em Portugal foi branda. Charles Baudelaire não viu a repercussão de sua poesia e por aí vai. Um certo professor da cidade disse que os autores piauienses não sabiam escrever, que ele escrevia melhor (embora nunca tenha escrito nada). Discordo. Assis Brasil ganhou o prêmio Walmapi duas vezes e ainda o Prêmio Coelho Neto da ABL. O. G. Rego de Carvalho ganhou o Coelho Neto da ABL. H. Dobal, que era avesso à política literária, ganhou o Prêmio Jorge de Lima do INL, o Mário Faustino fez o que fez… Procurem saber quem são os escritores contemporâneos de São Paulo, do Rio, de DF, de Minas, de Santa Catarina, do Paraná, da Bahia… Não devemos nada a ninguém, é tudo uma questão de ignorância e de preconceito.

 Adriano – O que fazer diante dessa ignorância e desse preconceito?

Halan Resta seguir em frente, não dá para voltar. O Villa-Lobos dizia que escrevia cartas para o futuro e não aguardava resposta. Portanto, nestes tempos sombrios, em que já não há solidez  no mundo, publicar é antes de tudo um ato de esperança. Escrever é lutar contra ignorância, inclui-se a do autor. Digo isso por que o Mário Faustino pregava que o escritor medíocre não era inofensivo, posto que compromete seriamente a língua, enquanto que o escritor superior a engrandece.

Adriano – E quais os próximos passos do escritor Halan Silva?

Halan Como disse, no momento estou escrevendo um romance que se intitulará Atoleiro. Neste trabalho, faço uma viagem ao passado de  Campo Maior, que foi uma cidade próspera, marcada por uma linda paisagem. É para mim o maior desafio que me propus, não sei se vou conseguir. Depois, pretendo publicar alguns poemas que venho traduzindo por meio de um processo de recriação literária. O H. Dobal, que traduzia muito bem, dizia-me que para se traduzir um poema não era necessário um conhecimento aprofundado da língua alienígena, mas duas coisas essênciais: 1) Uma boa percepção poética, 2) E um conhecimento razoavel da língua para onde se vai fazer a tradução, ou melhor, a recriação poética. Como entendo que poesia é sempre algo pessoalíssimo, venho traduzindo os poemas que me agradam (esse é o critério). Pretendo fazer uma publicação alternativa, fora do mercado editorial (tipos as edições que você, Adriano, costuma fazer). Se a divina providência me favorecer, gostaria de encerrar a minha incursão escrevendo um livro de poemas. Ao dizer isso, afirmo que para mim a poesia, arte como um todo, diferentemente da ciência, que vale-se da verdade proposicional, tem um quê de mistério que me encanta, embora há quem diga que a possua por inteiro, mas eu me recuso a acreditar nisso. No dia que a arte for tomado como verdade proposiciona, eu desisto dela. Ah, estava esquecendo. eu e o João Kennedy, com base em depoimentos, estamos organizando a biografia do professor Cineas Santos, que a despeito do que possam pensar seus detratores, é uma pessoa de grande importância para a cultura do Piauí.

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Adriano Lobão Aragão é autor de Os intrépidos andarilhos e outras margens (romance, 2012) e  Destinerário (poemas, 2019), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

Insólito, de Demetrios Galvão

Entrevista com Demetrios Galvão concedida a Adriano Lobão Aragão, em janeiro de 2012, após a publicação de seu livro de poemas Insólito.

Adriano Lobão Aragão – Por que Insólito?

Demetrios Galvão – Gosto da palavra insólito primeiramente por sua sonoridade – breve, encorpada; segundo, porque a própria palavra realiza o seu significado e produz uma imagem bastante interessante, além do que é uma palavra pouco usada, o que lhe dá um ar vigoroso e ao mesmo tempo misterioso; terceiro, pela coincidência de já existir no conjunto dos poemas do livro um texto intitulado “insólito”, que funciona como se fosse um verbete, é um poema que começa assim “insólito: carregar cemitérios e ferrugens nos bolsos…”. Dá a impressão que o poema constrói o significado da palavra. Assim, é como se o poema produzisse novos sentidos para a palavra “insólito”, mas ao mesmo tempo, dialogando com o significado dela que quer dizer, na acepção do dicionário, “o incomum, o não habitual, o estranho”; por último, que o significado de “insólito” diz muito sobre a minha construção poética – a produção de imagens não habituais, estranhas. Pois me debruço sobre a criação de imagens-poéticas que foge do corriqueiro em um diálogo direto com as estratégias surrealistas de transfiguração do real. Então, faço o estranho virar a experiência do estranhamento, essa é uma das propostas do livro, como bem aponta o poeta Rubervam Du Nascimento na apresentação do livro.

Adriano – Trata-se de uma busca pela desautomatização da palavra?

Demetrios – Sei bem que os textos criam imagens e que as imagens também produzem textos. Mas no meu caso as imagens ocupam um lugar central e o meu esforço é em produzir imagens não habituais, através de um trabalho de deslocamento, de tirar as coisas que comumente tem lugar certo, estabelecido na prateleira cartesiana – nomeado, classificado, selecionado,… Dito isso, o estranhamento que procuro criar resulta de um trabalho de curto-circuito na linguagem – junção de mundos distantes para a feitura de um outro. Tento mobilizar a linguagem não para a realização do óbvio ou do “realista”, isso não me interessa. Mas pelo contrário, para transfigurar essa “realidade” e inventar outros mundos através da linguagem.

Adriano – Em que aspectos a poesia de Insólito se diferencia de Cavalo de Troia (2001) e Fractais Semióticos (2005)?

DemetriosCavalo de Troia é um livro em que a mensagem é mais forte que a linguagem em si, no caso, a poesia era só o meio. A escrita, na época, estava engajada com questões sociais, protestos, movimento Anarco-punk e poesia marginal. Esse foi um livro completamente artesanal, que eu fazia em casa com a ajuda do meu irmão e vendia em shows de rock, na universidade e em encontros de estudantes. Fractais Semióticos é um diálogo muito direto com os escritos beats, aquelas coisas de viajar e escrever sobre a estrada etc. Nesse livro, começa a existir uma preocupação com a linguagem. No período em que escrevi os poemas de Fractais Semióticos (2001 – 2002), conheci alguns poetas de Fortaleza e consolidei para mim, a ideia de ser poeta. Esse é um livro que tem poemas que vou levar para o resto da vida, pois há uma relação forte de poesia e experiência – experimentação. Insólito é algo que considero mais denso. Nesse momento, me preocupo bem mais com a linguagem e com as estratégias de criação, e o meu diálogo se torna mais próximo com o surrealismo. Insólito é um investimento poético-estético planejado. Mas em todos os meus livros, estou muito implicado nos textos, a primeira pessoa é presente – há um sujeito produzindo ações, há um envolvimento no campo das emoções. O percurso que se desenha é de uma maior compreensão do papel da linguagem, articulando intensidade e o fluxo espontâneo.

Adriano – Então, poesia e vida são indissociáveis?

Demetrios – Na minha produção, poesia e vida estão intimamente relacionadas. Procuro articular a experiência (vida) e o experimento (linguagem), a intensidade das ações e do desejo e a densidade construída na/pela linguagem. É como digo em um de meus poemas: “é preciso alimentar a loucura que carregamos na mochila”, e esse alimento é o campo do sensível a que estou inserido: são as imagens cotidianas que me atravessam, são as linguagens artísticas que consumo, é a minha companheira, são os meus gatos, os peixes, o cheiro do café – logo as questões que envolvem vida e linguagem criam um campo de comunicação e ressonâncias que resultam em uma costura íntima entre vida e poesia – poesia/viva. Interessa-me essa contaminação ente os campos, até porque são indissociáveis. Nessa primeira década dos 2000 ficou muito em evidência um modo de fazer poesia em que o sujeito e o sentimento foram retirados do texto, resultando em um artefato insípido – terrivelmente limpo, sem rugas, sem ruídos, na qual a única marca humana é a própria linguagem. Não me atrai essa poesia em que a linguagem se torna um fim em si mesmo, onde o texto poético parece mais uma charada sem resposta – hermética demais.

Adriano – Há diversas sinestesias, assim como referências musicais e até mesmo astrológicas. Como esses aspectos influenciam vida e poesia?

Demetrios – Interessante como tudo que está à nossa volta se torna material para poesia. As sinestesias que você menciona são inevitáveis em meus poemas, pois o que me atravessa e interfere na minha percepção sensorial termina ocupando um lugar no momento em que escrevo. As cores, os sabores e os cheiros são mencionados constantemente, como por exemplo: “sinto o cheiro de teus movimentos coloridos violando minhas brânquias”, ou então “tua alma de planta ornamental tem gosto azulado”. Mas as experiências sensoriais são (re)produzidas poeticamente de forma atravessada, deslocando suas correspondências originais. Com relação às referências citadas dentro dos meus textos, elas são muitas e diversas principalmente no que diz respeito à música. Sou uma pessoa que se movimenta pela música, por trilhas sonoras e, desse modo, a música e a atitude de algumas bandas e estilos musicais influenciam muito minha escrita como, por exemplo: The Doors, Velvet Underground, Radiohead, Elliot Smith, Tom Zé, Afrossambas, Nação Zumbi, percussão de terreiro e por aí vai. Escrevo na maioria das vezes, mas nem sempre, no ritmo do rock e imaginando os quadros de Chagal, as fotografias de Brassaï, as pinturas de Basquiat e automaticamente entremeando com os acontecimentos do meu cotidiano e da minha vida. Utilizo as referências da música, da pintura e do cinema para compor uma teia semântica em que uma área empresta sentido a outra e assim embaralho as coisas produzindo imagens insólitas – “como peixes cegos vagamos por cidades esquecidas e praças ensolaradas que Pollock desmantelava com seu pincel de canivetes”. Certa vez, o poeta Roberto Piva disse em uma entrevista que “uma poesia sem música, sem jogo de cintura, é uma poesia rígida”, e ele tem toda razão. Nessa dança de salão ou de terreiro é o som que mistura os elementos da alquimia do verbo.

Adriano – Como está sendo a repercussão do Insólito?

Demetrios – Ainda é cedo para avaliar, porque o lançamento ainda está recente. As ressonâncias de um livro de poemas demoram a acontecer. Penso que é no decorrer de 2012 que Insólito vai criar seus caminhos. No início de fevereiro vou fazer uns 2 lançamentos em Fortaleza e depois em Pedro II – com o tempo ele vai se espalhar e ganhar os seus leitores. Mas de todo modo, tenho ouvido coisas boas e espero que as pessoas gostem do livro.

Adriano – Você faz parte do grupo literário Academia Onírica. Como se dá esse convívio artístico em relação à sua produção literária?

Demetrios – Tem sido muito importante o exercício de trabalhar em coletivo, pois a Academia Onírica é formada por 6 pessoas que articulam os eventos e os demais trabalhos (revista, cd, zine), contudo têm mais pessoas envolvidas nesse projeto (músicos, fotógrafos, artistas plásticos, videomakers, escritores) e o legal é que o debate em torno das linguagens artísticas é bastante amplo. Essa teia que a AO vem construíndo desde janeiro de 2010 tem proporcionado para todos nós uma maior circulação e visibilidade de nossos trabalhos coletivos e individuais. Interessante que depois que formamos o grupo, todos foram mais instigados a escrever e logo a produção de aumentou, bem como o nosso diálogo ficou mais próximo, passamos a contribuir um com o outro de modo íntimo. Às vezes escrevo um poema e mostro para o Thiago E ou o Valadares e eles dão alguma ideia e as coisas seguem. O contrário também acontece. Alguns detalhes de Insólito foram pensados dentro desse contexto e até mesmo o lançamento, que aconteceu com um recital e a participação dos amigos da AO.

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Demetrios Galvão nasceu e vive na cidade de Teresina/PI. É poeta, editor e professor. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017), Reabitar (2019) e do objeto poético Capsular (2015). Em 2005 lançou o CD de poemas Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico. Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012) e da AO-Revista (2011-2012). Atualmente edita a revista Acrobata.

Adriano Lobão Aragão é autor de Os intrépidos andarilhos e outras margens (romance, 2012) e Destinerário (poemas, 2019), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

Poesia reunida, Graça Vilhena

VILHENA, Graça. Poesia reunida. Teresina: Quimera, 2018.

– Volume reunindo Em todo canto (1997) e Pedra de cantaria (2013)
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TUA

São minhas essas margens
ombros do rio em que choras
guardando teus peixes
e aflição em correnteza.

É minha a chama
que faz arder a tua imagem fina
e empluma o teu voo.

É teu esse amor que arquiteta
e compõe a nuvem em que pousas
para secar a saliva dos teus vícios.

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COISAS SIMPLES

também tive amor sem cura
que enterrei agasalhado
na bainha de um punhal

hoje quero coisas simples
sem seiva como os gravetos
que o vento não mais assusta
e se quebram sem doer

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Maria das Graças Pinheiro Gonçalves Vilhena nasceu em Teresina, em 10-02-1949. É poetisa e contista, participante da Geração Mimeógrafo ou Geração 70. Formada em Letras, pela Universidade Federal do Piauí e tem especialização em Língua Portuguesa, pela PUC-SP. Leciona Literatura e Redação, no Instituto Dom Barreto. Autora de: Passo a pássaro (poesia, 1997, com William Melo Soares); Em todo canto (poesia, 1997); O jornaleiro de gesso (contos, 2002); Pedra de cantaria (poesia, 2013).

Ô de casa!

SANTOS, Cineas (org). Ô de casa! Teresina: Editora Nossa, 1977.

Coletânea de contos, incluindo Dodô Macedo, João de Lima, João Carneiro, Paulo Machado, Cineas Santos, Magalhães da Costa, Geraldo Borges, Durvalino Couto, Arnaldo Albuquerque, João Luiz, Pedro Guerra, Will Prado, Menezes y Morais, Francisco Miguel de Moura, J. Carlos de Santana Cruz, Assaí Campelo e Rubervam Du Nascimento.

Capa: foto de de Fernando Campos e arte-final de Fábio Torres

Impressão: Comepi

Mais que imperfeito, Fred Maia

MAIA, Fred. Mais que imperfeito. Porto Alegre: Ameop, 2004.

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CIDADE

um sobrado
assombra a Consolação
emparelhado
o cemitério dorme
seus mortos sossegado
o sobrado
é morto vivo
no passado
a luz no andar de cima
olho ensimesmado
que os olhos dos que estão
aqui desse lado
fecham-se acordados

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pequeno jarro
só um traço desenhado
broto de bambu

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sol inclinado
o aquário vazio prisma
peixes imaginários

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Fred Maia é piauiense de Oeiras. Poeta, educador social e jornalista. Publicou Um rock por nada (Arte Pau Brasil/SP); eupor (Nômades/SP); Plínio Marcos – A crônica dos que não têm voz (Boitempo/SP – Ensaio biográfico, com parceria de Vinicius Pinheiro e Javier Contreras).

Mátria, Laís Romero

ROMERO, Laís. Mátria. São Paulo: Paraquedas, 2023.

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MÁTRIA

Meu corpo encontrou um ritmo
meu corpo abrigo
país dos meus filhos
meu corpo ferido frio
corpo dormindo
capataz dos meus delírios
corpo vasto território
corpo de corte e tintura
mapa em relevo da dor
meu corpo sereno
corpo, pelos e suor
meu corpo diz e asseguro
estar a caminho
no presente
e nos medos multiplicação

Meu corpo aberto e preciso
Coragem, eu insisto

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ESTUDO Nº 7

Dos teus olhos de âmbar
escapa a minha dança
e sobram outros segredos

Duros aspectos do medo
sinto meu pulso revidar
um ritmo atravessado em garganta e
ainda em dança em dança
no âmbar de nossos anseios

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Laís Romero nasceu em Teresina, PI, em 1986. Mestra em Letras pela UESPI e especialista em escrita e criação pela Unifor. Atualmente, trabalha como revisora e editora. Mátria é sua primeira publicação solo.

 

 

Refeição do tempo, Caio Negreiros

NEGREIROS, Caio. Refeição do tempo. Teresina: Avant Garde, 2021.

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maresia
não desfez os nós
restou o mar

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SÃO BENEDITO

Na melhor fatia dos anos 80, jovens se aglomeravam no adro da São Benedito, até o som estridente da sirene do colégio Cursão avisar o início das aulas.

O tempo insidioso não ousava deixar marcas. O tempo infinito dos cartazes curiosos do Rex; ou da efemeridade de uma ficha de fliperama do velho Clube dos Diários.

Mas ninguém se iluda com este senhor e suas cascas. Não há reforma que apague o açoite, ainda que em silêncio e invisível.

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Caio Negreiros é ex-atleta aposentado compulsoriamente. Estuda música com sucesso duvidoso. Poeta e Procurador do Município de Teresina. É autor dos livros: A decadência das horas, Portal do Hades e Sobras do dia (Edições Não-Ser).

A inconstância dos fluxos, Demetrios Galvão

GALVÃO, Demetrios. A inconstância dos fluxos. São Paulo: Editora Primata, 2023.

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A INCONSTÂNCIA DOS FLUXOS

uma porção de vida felina
dorme em minhas mãos
observo a força vibrar
no corpo de 200 gramas

por um instante, penso
na poeira cósmica que nos cobre
do nascer do mundo ao algoritmo
uma inteligência artificial
que planeja o nosso futuro

esse lapso que dura
uma eternidade de incertezas
oferece margens difíceis de saber
onde pôr os pés
qual melhor forma de plantar?
para qual deus dar atenção?

agora mesmo
uma performance pandêmica
sincroniza a atenção dos espectadores

no seu espetáculo mortífero
transforma nomes de família
em vazio numérico

em algum lugar do país
uma pessoa precisa encher os pulmões de ar
mas a atendente diz que está em falta
explica que é uma espécie de castigo
por maltratarem o planeta

volto para a pequena porção de vida
em minhas mãos
contemplo sua saúde
pelo rastro que deixa
pela vontade de comer de hora em hora

uma infância se prepara para a inconstância dos fluxos.

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O MUNDO FEITO COM AS MÃOS

no universo antropomágico
do mundo feito com as mãos
existem seres bonitos em sua simplicidade
uns visíveis e outros invisíveis
essa comunhão que frutifica
uma espiritualidade suava

de mãos dadas com a mística do mundo
o ciclo cósmico renova ruínas
e a força transformadora
produz alimentos
molda idades abstratas
reluz palavras na escuridão

a humanidade come na mão da natureza

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Demetrios Galvão (Teresina, PI, 1979) é professor, poeta e editor. Autor dos livros de poemas Fractais semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O avesso da lâmpada (2017), Reabitar (2019) e do objeto poético Capsular (2015). Tem poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias. É coeditor da revista Acrobata, em atividade desde 2013. www.revistaacrobata.com.br

Big sentido, Durvalino Couto Filho

COUTO FILHO, Durvalino. Big sentido. Teresina: Navilouca Produções, 2022.
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BIG SENTIDO

A saber: os sentidos somam cinco
Para nos dar essencial atenção
Olfato paladar tato e visão
Mais a audição:
É tudo que sinto

Mas sei que há o sentido poético
Um sentido com frequência e altura
Senso que faz da palavra figura
Como diz Décio sendo um tanto hermético
Esse sentido que mexe comigo

Misterioso e torpe em sua essência
Modo de dizer um tanto ambíguo
Mas que persiste em sua permanência
Um Big Sentido se fez meu amigo
Aquele que relativiza minha existência

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DEPOIS

fomos
desfeitos
um para o outro

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Durvalino Couto Filho nasceu em Teresina, a 20 de outubro de 1953. Trabalhou em vários jornais alternativos com colegas de geração, destacando-se o jornal Gramma. Atuou como letrista e baterista na música piauiense, com inúmeras parcerias na cena musical. Trabalha com publicidade e já atuou também como ator. Lançou seu primeiro livro de poemas, Os caçadores de prosódias, em 1994.